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7. Violinos e outras invenções
O alfabeto latino, com todas as alterações que conhecemos, é hoje o alfabeto mais usado no mundo.[13] E, no entanto, um romano que viajasse no tempo e pegasse num livro português ficaria um pouco baralhado, não só com a forma peculiar do objecto que tinha nas mãos, mas com os próprios símbolos usados para escrever o texto. Embora usemos o alfabeto latino, na verdade usamo-lo à portuguesa — é um alfabeto latino particular, parecido com o alfabeto usado por muitos outros povos do mundo e já bastante distante do alfabeto usado pelos Romanos. Ou seja, também a escrita muda, tal como os sons que usamos na oralidade mudam ao longo dos tempos. A diferença é a velocidade — a escrita muda, mas em câmara lenta. Se as mudanças na oralidade são processos inconscientes, as mudanças na escrita são uma série de pequenas afinações, quase imperceptíveis — e, de certa forma, também inconscientes.
A letras que usamos não foram inventadas por ninguém em particular. O processo foi gradual, feito de pequenas adaptações imperceptíveis, numa evolução que não é assim tão diferente da evolução biológica: as letras adaptaram-se às necessidades e preferências de quem as usava — e aos materiais ao nosso dispor. As tecnologias humanas desenvolvem-se, em muitos casos, desta forma gradual. Como Matt Ridley explica no livro The Evolution of Everything, aspectos concretos dos objectos que usamos, como os efes dos violinos, têm formas particulares não porque alguém tenha decidido de forma consciente dar-lhes aquela forma, mas como resultado de um processo evolutivo com a duração de séculos, em que a selecção, não sendo natural, é feita pelas preferências dos artesãos e utilizadores. Quem comprava violinos preferia aquela forma à outra — e as formas mais escolhidas foram ficando, sujeitas a mais uma ronda de escolhas, numa afinação sem fim pelos séculos fora.
Da mesma forma, um livro tem a forma que conhecemos depois de outro processo evolutivo do mesmo tipo. Esta evolução lenta não se vê, porque ocorre em escalas temporais maiores do que uma só vida humana (tal como acontece na evolução das espécies). A evolução dos objectos e das tecnologias não pára: as nossas letras continuam a mudar gradualmente — dentro de 200 anos, as letras com que uma nova edição d’Os Maias será impressa serão ligeiramente diferentes das nossas.
Em suma: ninguém inventou as nossas letras, mas muitos dos que as usaram ao longo dos milénios afinaram-nas gradualmente. Assim, recebemos dessa cadeia de escribas e tipógrafos a extraordinária tecnologia que é a escrita.
Repare numa criança a ler. De dedo a seguir a linha, língua entre os lábios, reconstrói na cabeça o enredo da história — tem a imaginação a trabalhar.
Repare também num adulto a ler um artigo sobre biologia: também a sua imaginação está a trabalhar para compreender o mundo um pouco melhor.
Repare agora no seu caso: está a ler um texto sobre o sistema de escrita português e a imaginar aquilo que lhe vou dizendo… Olhe para a última palavra da frase anterior: «dizendo». É uma metáfora, pois não lhe estou a dizer nada. E, no entanto, quase nem notamos a metáfora, pois os sistemas cerebrais que está a usar para decifrar estas manchas estão intimamente ligados à linguagem. Estou a bater numas teclas, que fazem aparecer umas manchas no ecrã do computador — quem me lê está a olhar para as mesmas manchas no seu computador ou telemóvel e, na sua cabeça, está a reconstruir as palavras. Assim, usando uns rabiscos que descendem da escrita dos Fenícios, consigo mexer na imaginação de quem me lê, como se estivéssemos juntos a conversar.
É uma invenção e tanto!
Notas e referências
[1] O egípcio — a língua dos faraós — não está na génese da língua que a maioria dos egípcios fala hoje em dia, pois o que se ouve nas ruas do Cairo é o árabe egípcio. Mas há ainda uma minoria de egípcios — os coptas — que falam qualquer coisa que descende dessa língua dos faraós.
[2] A escrita egípcia é o que hoje chamamos escrita logográfica — o sistema é semelhante ao sistema usado para o chinês: os símbolos representam palavras da língua, mas também a forma como essa palavra soa, podendo ser reutilizados para representar outras palavras, com diferente significado, mas som semelhante.
[3] Apesar de o uso de letras — um sistema de escrita baseado na fonologia — ser bastante mais prático que o uso de logogramas — um sistema baseado na morfologia —, a verdade é que várias línguas ainda usam os sistemas mais complexos e estão longe de querer mudar: falo do sistema de escrita chinês, por exemplo, e do sistema de escrita japonês, uma mistura de dois silabários e milhares de caracteres de origem chinesa. Uma boa descrição destes sistemas para quem não os conhece está no livro Babel, de Gaston Dorren.
[4] Leia-se o artigo que relata a descoberta: Nuno M. Neto et al., “Uma inscrição lapidar fenícia em Lisboa”, Revista Portuguesa de Arqueologia, volume 19, 2016, pp. 123-128 (http://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/publicacoes/rpa/rpa19/10_123-128.pdf).
[5] Não é muito diferente do que acontece, ainda hoje, no árabe, por exemplo – embora o árabe só dispense algumas vogais, não todas.
[6] Já a língua grega mudou muito, como discuti no artigo «Que aconteceu ao latim e ao grego antigo?».
[7] Como, aliás, ainda acontece na Índia, onde os sistemas de escrita aparecem como cogumelos Sugiro de novo o livro Babel, de Gaston Dorren, para um passeio pela paisagem linguística da Índia.
[8] Estou a seguir a viagem que deu origem às nossas letras, mas, a partir das letras fenícias, há muitos outros alfabetos que foram aparecendo e desaparecendo. Uma descrição mais desenvolvida (e muito visual) do processo encontra-se no livro The Story of Writing, de Andrew Robinson.
[9] Cada alfabeto tenta representar as diferenças significativas entre sons. Os sons que ouvimos a sair da boca dos falantes são em muito maior quantidade do que as letras de um qualquer sistema — ainda por cima, quando falamos, não estamos a emitir sons isolados, mas sim um contínuo sonoro difícil de dividir em unidades. No entanto, o nosso cérebro interpreta esse contínuo como um conjunto de sinais sonoros capazes de distinguir significados: os fonemas. Na prática, isto significa que os falantes de português dizem um /p/ de formas muito diferentes, mas todas essas formas estão ligadas a um mesmo fonema /p/, uma unidade capaz de distinguir o significado de «bata» e «pata». Noutras línguas, o som [p] e o som [b] estão ligados ao mesmo fonema e não distinguem significados. (Em linguística, é costume representar os grafemas — a que chamamos habitualmente “letras” — desta forma: <p>; os fones — a que chamamos “sons” — são representados assim: [p]; e os fonemas desta forma: /p/. Em geral, os linguistas usam o Alfabeto Fonético Internacional para a representação de fones e fonemas.)
[10] Há ainda a considerar distinções que se faziam em fases anteriores da língua e que já não existem — mas que se mantêm na escrita. Dou um exemplo. Os ingleses fazem a distinção entre o som /ch/ e o som /tch/. O primeiro é grafado, habitualmente, como <sh> e o segundo como <ch>. Desta forma, a palavra «ship» é diferente de «chip». Em português esta diferença entre /ch/ e /tch/ não distingue significados. Portante, a nossa escrita não tem de representar a diferença. No entanto, em fases anteriores da língua, essa diferença era significativa. Por isso, temos símbolos para representar a diferença: <x> e <ch>. Da mesma forma, <ss> e <ç> (e ainda <s> no início de palavra ou após consoante) representam o mesmo som — mas nem sempre assim foi. Já o castelhano ainda diferencia o <b> do <v> na escrita, mas na oralidade as duas letras representam o mesmo fonema /b/ (um fenómeno que também acontece em áreas significativas do português europeu).
[11] Se estiver interessado em saber mais sobre esta escrita, pode encontrar mais informações em: http://tipografos.net/fonts/Visigotica-Detalhada.pdf
[12] Algumas das peças incluíam várias letras. Tal como antes da imprensa algumas letras se ligavam umas às outras naturalmente, depois da invenção da imprensa há alguns conjuntos de letras que existem na mesma peça — as chamadas ligaturas. Assim, por exemplo, é habitual que houvesse, nas tipografias, peças com a ligatura do «f» e do «i». Ainda hoje, encontramos essas ligaturas em muitos livros impressos, embora sejam raras nos textos do dia-a-dia. Em alemão, há ainda uma ligatura usada habitualmente: o <ß>, a junção do velho <s> longo — <ſ> — com um <s> normal. Em francês, a ligatura <œ> representa um som particular. Há muitos outros exemplos. A letra espanhola <ñ> surgiu de uma ligatura entre dois «n». Essa ligatura chegou a ser usada em Portugal, sendo possível encontrar inscrições onde a palavra «anno», em que a repetição do <n> era apenas uma particularidade ortográfica e não representava um som diferente do <n> simples, era escrita como «año», assemelhando-se a uma palavra espanhola, embora lida de maneira diferente (por outras palavras, o <ñ> era uma ligatura em português, mas uma letra em castelhano).
[13] Há outros dois alfabetos europeus que partilham muitas letras de aspecto semelhante: o grego e o cirílico. Encontramos os três alfabetos nas notas de euro. Depois, temos alfabetos bem diferentes: o georgiano, o arménio e o coreano. Apresentei os seis alfabetos do mundo (limitei-me ao sistemas estritamente alfabéticos) neste artigo: «Viagem pelos seis alfabetos do mundo». Note-se que, embora possamos considera-los alfabetos de forma genérica, sistemas de escrita como o árabe não são estritamente alfabetos, por não representarem todas as vogais. Aproximam-se, assim, do sistema fenício.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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