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4. A invenção do alfabeto latino
Por esses dias, um sistema de escrita mudava de região para região, um pouco a língua falada.[7] Os Gregos não tinham apenas um sistema de escrita: o grego moderno usa o sistema jónico, mas na Antiguidade havia outras variantes.
Uma dessas variantes foi transplantada para a Península Itálica, onde começou a ser usada pelos Etruscos. Ora, os Etruscos usaram as letras gregas, mas usaram-nas para escrever uma língua que não conhecemos. Se sabemos ler textos em grego antigo, se sabemos ler textos em fenício, se até sabemos ler textos em egípcio – não sabemos o significado das palavras etruscas.
O certo é que as letras etruscas — aprendidas dos gregos que habitavam em certas zonas de Itália — acabaram nas mãos dos Romanos, que as adaptaram à sua língua, o latim, ou seja, a forma que o itálico assumia no Lácio, a região de Roma.
Esta viagem do alfabeto grego até ao alfabeto latino fez-se com alguns solavancos.[8] Por exemplo, a letra grega <Γ>, que representa o som <g>, passou pelos Etruscos, que a usaram para representar o som /k/, e chegou aos Romanos na forma <C> com o valor de /k/. Ora, os Romanos, ao contrário dos Etruscos, tinham o som /g/. Assim, precisaram de inventar uma nova letra para representar o som. Com um traço, transformaram o <C> num <G>: problema resolvido.
Com mais ou menos adaptações, chegámos às letras que vemos nas velhas inscrições latinas, onde encontramos com poucas diferenças grande parte das nossas maiúsculas (as minúsculas demoraram mais uns séculos a ganhar as formas actuais).
Já se olharmos para a mais antiga inscrição em latim, encontrada nas escavações de Lapis Niger, em Roma, notamos como algumas letras parecem mais próximas das letras fenícias do que das nossas letras.
5. A invenção da cedilha (e companhia)
Cada alfabeto tenta representar os sons da língua — ou melhor, tenta representar os fonemas da língua.[9] Pois bem, como a língua está em constante mudança, rapidamente a relação entre letras e fonemas se torna muito complexa, com regras complexas e muitas excepções. Ainda por cima, se pegarmos num conjunto de símbolos e o aplicarmos a uma língua para a qual não foram pensados, a complicação do sistema aumenta.
Quando começámos a usar o alfabeto latino para representar o português, os fonemas da língua já não eram os mesmos que os fonemas latinos. Havia sons que não existiam no latim — como os representados pelos dígrafos <nh> e <lh>. O alfabeto teve de ser adaptado. Estas afinações foram sendo feitas ao longo do tempo, adaptando o alfabeto às línguas que descendiam do latim.[10] Pelos séculos fora, começou a distinguir-se o <V> do <U>. O <I> também serviu de base para a nova letra <J>. Começaram a cristalizar-se as formas maiúsculas e minúsculas das letras, com muitas variantes. Surgiram símbolos adicionais, como a nossa famosa cedilha.
A história do surgimento da cedilha é curiosa. A escrita variava pelo território europeu. Na Península Ibérica, tínhamos a chamada escrita visigótica, um alfabeto latino com formas particulares, já com maiúsculas e minúsculas.[11] Tinha não só formas particulares para as letras, como uma série de ligaturas, ou seja, maneiras de escrever letras em conjunto. Aqui está a base deste alfabeto latino à ibérica:
Repare naquela letra final, que na forma maiúscula reconhecemos como o nosso Z. Quando se começou a escrever nas várias línguas vulgares da Península, a pequena letra minúscula correspondente ao <z> acabou por se transformar no famoso c de cedilha. Se olhar com atenção para a letra <Ꝣ>, verá como a parte de cima da letra parece um <c> e a parte de baixo parece uma cedilha ampliada. O nosso «c de cedilha» mais não é que a mesma letra com proporções diferentes. Séculos depois, o castelhano deixou cair a letra, usando em sua substituição o Z, mas o português e o catalão mantiveram a forma baseada na escrita visigótica — forma que, aliás, também existe em francês e em mais umas quantas línguas. Assim, os castelhanos — que usaram durante séculos o símbolo — acham estranho aquele penduricalho em palavras catalãs como «Barça», que um castelhano escreve «Barza».
Foram surgindo outros símbolos, como o til, que mais não é do que um pequeno «n» em cima de outra letra — no caso do castelhano, os dois «nn» (um em cima do outro) representam o som que em português é grafado como <nh>. Assim apareceu um dos símbolos do castelhano: a letra Ñ. Sim: letra. O alfabeto castelhano inclui a letra Ñ a seguir à letra N. Nós não damos a honra de letra ao c de cedilha, que é tratado como uma variação da letra C.
6. A invenção da imprensa
Hoje sabemos que Gutenberg não inventou a imprensa, que já tinha aparecido, pelo menos, na China. Cá pela Europa, um sem-número de pequeníssimas evoluções foram pavimentando o caminho para chegarmos à máquina de Gutenberg — que, não tendo sido a primeira, foi a origem do uso da imprensa na Europa. A partir da famosa máquina, foram sendo feitas muitas outras pequenas adaptações e invenções pelos séculos fora.
Na imprensa, cada letra não é recriada de raiz por um escriba, mas antes impressa no papel por uma peça de metal com a forma da letra.[12]
O sistema de caracteres móveis permite compor uma folha para reproduzi-la quantas vezes quisermos. O primeiro livro impresso em Portugal foi o Pentateuco, impresso em Faro, em 1487 — estava escrito em hebraico, um alfabeto que também teve origem nas velhinhas letras fenícias. Já o primeiro livro em português foi o Sacramental, impresso em Chaves em 1488.
As primeiras letras foram esculpidas com base nos estilos de escrita mais habituais na época. A criação de conjuntos de letras levou à criação de diferentes tipos de letra. Hoje, as letras são feitas de píxeis, mas ainda seguem os vários tipos, alguns dos quais com origem em tipos antigos, outros criados para o uso digital. Há, aliás, artistas ou artesãos que criam novos tipos de letra — e há mesmo empresas que têm tipos de letra particulares, parte da sua identidade gráfica.
Os particulares tipos de letra que vemos nas placas da estrada ou nas inscrições públicas são parte visível das paisagens por onde passamos. De certa maneira, a forma das letras no espaço público também faz parte da identidade de cada povo. Quando passamos a fronteira de Espanha para Portugal, notamos de imediato como as placas são placas à portuguesa.
(cont.)