Todos dizemos que o nosso alfabeto é o latino. No entanto, as letras romanas não foram inventadas do nada — e um romano que acordasse nos dias de hoje ficaria surpreendido com muitos dos nossos símbolos, a começar pela cedilha, passando pelo til, terminando em letras como o J. Quem inventou o nosso alfabeto? Façamos uma viagem pela sua história.
1. A invenção da escrita
Ninguém acordou um lindo dia e inventou a escrita. O que aconteceu terá sido algo mais parecido com esta história…
Um contabilista sumério começa a usar um pequeno desenho de um cavalo para assinalar logo a seguir o número de cavalos que estavam nos estábulos do seu patrão.
Anos depois, lembra-se de apontar as várias localizações dos cavalos nos estábulos do patrão.
Passam gerações. Um outro escriba decide usar o mesmo símbolo para representar o nome de uma terra que tinha os mesmos sons (ou aproximados) da palavra para «cavalo».
Agora, o desenho já não representava um cavalo, mas o som da palavra «cavalo» naquela língua em particular.
Com o tempo, os escribas começaram a adaptar os símbolos que foram criando pelos séculos fora para escrever frases inteiras, como «Abgal comprou cinco cavalos a Sham.» — com uma ou outra adaptação, os símbolos usados para os animais e produtos agrícolas começaram a ser usados para representar nomes próprios, verbos, preposições…
Em suma: o grande truque — um truque descoberto lentamente, ao longo de gerações — foi a ligação entre a língua usada da boca para fora e os símbolos na pedra, na argila, no tecido… Passámos a criar frases com a magnífica máquina que temos na cabeça — a linguagem humana, concretizada numa das muitas línguas — mas agora de maneira um pouco mais permanente. O material em que escrevíamos era argila — e, assim, as formas dos símbolos reflectem os instrumentos com que marcávamos a argila. Estamos perante a escrita cuneiforme, ou seja, em forma de cunha.

As invenções — mesmo estas invenções graduais — são filhas da necessidade. Com a invenção da agricultura e das cidades, tornou-se necessário contar animais, fazer contas, organizar a administração de um Estado. Ora, depressa se percebeu que, com a escrita, podíamos gravar na pedra as histórias e a História, mais ou menos inventadas, dos reinos e dos povos —tornando tais histórias e tal História bem mais duráveis e poderosas.
A escrita terá sido inventada na Suméria, pois então — foi essa a origem de todos os sistemas de escrita ou apenas uma de muitas invenções independentes desta tecnologia utilíssima? Não sabemos bem — a história da escrita também se faz de zonas obscuras. Por exemplo: não é certo que os hieróglifos egípcios tenham relação directa com a escrita cuneiforme da Suméria. O que sabemos é que os hieróglifos são um sistema de escrita avançado, completo, pensado para uma língua em particular — o egípcio.[1]
Os egípcios gravavam os famosos hieróglifos na pedra, mas, com o tempo, surgiu uma escrita mais rápida, para escrever em tudo o que não fosse pedra, chamada «Demótico».[2] O Demótico é já uma simplificação da escrita hieroglífica, um passo em direcção à limitação do número de símbolos que deu origem aos alfabetos.
2. A invenção das letras
Se a invenção da escrita foi um golpe de génio (ou melhor, uma genial evolução gradual), os primeiros sistemas eram bastante difíceis de aprender e usar. Para representar todas as palavras da língua, eram necessários milhares e milhares de símbolos. Vista da perspectiva do futuro, a solução parece simples: escolhemos um número limitado de símbolos e combinamo-los para criar palavras.[3] Estamos perante a invenção das letras, ou seja, de um sistema de escrita combinatório.
Este sistema melhorado surgiu entre o Egipto e a área que hoje é a Síria e o Líbano — a origem remota terá sido o Demótico egípcio. Ora, como este teve origem nos hieróglifos, podemos bem dizer que escrevemos símbolos que descendem remotamente da escrita dos faraós.
É difícil desemaranhar o caminho percorrido por estes primeiros conjuntos de letras, mas o certo é que por volta do ano 1000 a. C., já existiam as letras fenícias — que se espalharam por todo o Mediterrâneo e chegaram mesmo às costas do Atlântico, como prova uma inscrição encontrada em Lisboa em 2014.[4]
Os Fenícios, um povo com tendência para a navegação e para o comércio, não nos deixaram muitos registos. Os Egípcios e os Gregos foram bem mais prolixos a escrever a sua História e as suas histórias. Talvez tenha havido um Camões fenício a cantar a ocidental praia libanesa (perdoe-se-me o anacronismo da referência ao Líbano, mas convém indicar onde ficava a tal Fenícia) — mas o certo é que esse Camões não deixou vestígio.
Os Fenícios navegavam, compravam, vendiam e escreviam – práticos como eram, usavam um sistema de apenas 22 símbolos. Com 22 letrinhas apenas se escreviam as palavras fenícias. É este é o alfabeto fenício:

Muitas das nossas letras já ali estão a dar os primeiros passos. O A está ali, no início, virado de lado, o M aparece com uma perna alongada… Encontramos ainda o K, o Q entre muitas outras das nossas letras.
Note-se que o pequeno touro que veio a dar origem ao nosso A não representava uma vogal, mas sim uma consoante. O sistema fenício não representava vogais, apenas consoantes.[5] É por isso que, de forma estrita, há quem prefira não usar o termo «alfabeto» no caso da escrita fenícia. No dia-a-dia, usamos a palavra «alfabeto» para este conjunto de letras, mas um alfabeto completo, no sentido que hoje lhe damos, implica o uso de vogais.
É estranho não haver vogais? Talvez: mas é uma questão de hábito. Por exemplo, se disser que estou a falar dum cargo político português e escrever «PRSDNT D RPBLC», julgo que é fácil perceber de que cargo falo. As vogais facilitam? Sim: mas também demoram tempo a gravar na pedra…
3. A invenção das vogais
As letras fenícias foram usadas durante mais de 1000 anos — e deram origem a muitos dos sistemas de escrita actuais. Desde as letras árabes às letras latinas, passando pelas gregas e pelas hebraicas, a invenção fenícia deu esplendorosos frutos.
Digo «invenção fenícia». Também aqui não houve nenhuma invenção espontânea. Os símbolos anteriores foram sendo adaptados, até chegarmos aos 22 símbolos conhecidos, que também não ficariam propriamente parados.
Os Gregos pegaram nestes símbolos para escrever a sua língua. Esta passagem não se fez sem sobressaltos — e o maior sobressalto de todos foi a necessidade que os nossos amigos Gregos tiveram de representar as vogais.
Não que alguém se tenha sentado um dia a inventar vogais. Terá sido uma invenção muito gradual. Os Fenícios, por exemplo, usavam um símbolo vagamente parecido com uma cabeça de touro para assinalar aquilo a que podemos chamar uma oclusiva glotal – trata-se de uma interrupção do fluxo sonoro que se faz na glote, um som que não usamos em português, excepto no meio da expressão «oh-oh», que usamos quando alguma coisa corre mal.
Ora, os Gregos não precisavam de representar esse som, pois não o tinham na sua língua. Talvez nem o ouvissem bem. Afinal, quando não temos um som na língua, ignoramo-lo com facilidade. Muitos portugueses ouvem um inglês a dizer «ship» e pensam ouvir ali no meio o nosso som /i/, por interferência gráfica e porque não temos o fonema inglês /ɪ/ (bem distinto do /i/ aos ouvidos de um inglês)… Pois bem: os primeiros gregos a aprender o sistema ouviam os Fenícios e é possível que tenham ouvido a tal paragem glotal como se fosse um /a/. Talvez — não sabemos bem. O certo é que o símbolo fenício passou a representar, no alfabeto grego, o fonema /a/. A forma também mudou um pouco: a cabeça de touro ficou com os cornos virados para baixo.
Já temos as consoantes, já temos as vogais — a Humanidade conhecia o primeiro alfabeto completo: o alfabeto grego. Foi uma invenção duradoura: ainda hoje é usado sem grandes alterações.[6]
(cont.)