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Hoje, é uma manta de retalhos em que o tecido original, muito germânico, já está cheio de remendos de todo o tipo. Alguém se importa? Há quem se importe, mas não interessa. (Já agora, lembro que há um livro muito bom sobre essa bastardia do inglês: Our Magnificent Bastard Tongue; nesse livro me inspirei para dar o título a este texto.)
O mesmo podemos ver no espanhol, no francês (até no francês!), no italiano — e em todas as outras línguas. Mesmo o esperanto, coitadinho, não passa duma mistura estranha de muitas línguas, só que em vez de ser na cabeça de milhões, foi na cabeça de um só homem.
As línguas ficam mais pobres com estas misturas todas? Claro que não! A ideia de pureza linguística é como todas as outras ideias de pureza: extraordinariamente sedutora, mas perigosa, daquele perigo mau, que às vezes até acaba em tragédia. É uma mania que não ajuda ninguém e só nos deixa enervados uns com os outros.
Por isso, todos os que querem uma língua impoluta, sem misturas, sempre no mesmo registo, sem palavrões, sem palavras populares em textos escritos (como «deslargar» e outras), sem um ou outro absurdo, sem redundâncias, sem palavras que querem dizer a mesma coisa, sem estrangeirismos: percebam que o português, como todas as línguas, é um fenómeno natural, um sistema complexo e desordenado, que podemos estudar, usar, moldar para nosso proveito — mas que dificilmente podemos controlar. Podemos (isso sim) conhecer e até amar esse bicho bastardo.
Podemos ainda — aliás, devemos — cada um de nós, tentar falar e escrever cada vez melhor a língua que nos calhou na rifa. É bastarda, mas é nossa.
Sim, temos de ter uma norma-padrão, o português seleccionado que serve para as situações formais e académicas — e serve de base à escrita, essencial à civilização. Quanto mais pessoas a conhecerem bem, mais pessoas têm acesso a muita coisa que julgo importante.
A norma-padrão é um instrumento essencial — mas não se convençam que é sagrada e, acima de tudo, não tentem reduzi-la ao mínimo, não tentem cortá-la até ficar sem vida. A norma pode ser mais ou menos rica — e quanto mais pura, mais pobre será. Sim: mesmo à norma, quando a conhecemos de trás para a frente, fica bem dar-lhe um pouco de sangue, esticar um pouco a corda.
Arriscar. Misturar. Sem medo. Querem protegê-la? Escrevam mais, leiam mais, trabalhem! Não desatem a querer cortar à língua palavras e expressões por esta ou aquela razão, deixando a norma mais pobre e mais distante da língua de todos.
É verdade, admito: isto vem muito a propósito do estardalhaço que li por causa duma simples palavra numa notícia. Fiquei pasmado com o absurdo. Uma pequena brincadeira, um pequeno risco que um jornalista decidiu correr — e vem a correr a brigada da língua, cheia de discursos inflamados a acusar os falantes da língua de todas as patifarias deste mundo. São os discursos habituais, que se viram contra a própria língua com a desculpa de a proteger.
Quando vejo tanta gente a atacar os outros por falarem português, tanta gente a atarefar-se a mudar a língua para a tornar mais lógica, mais pura, mais pequena, penso: quem salvará a língua de quem quer salvar a língua?
O que vale é que a língua é mesmo um animal selvagem: lá dá uns coices e continua, matreira e bastarda, saborosa todos os dias. E nós, com ela nos lábios, lá escrevemos, conversamos e damos beijos em bom português — e esquecemos esses tontos que a querem prender à força. Porque a língua é bastarda, sim senhora — e deliciosa para quem a souber ouvir.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
Há muitas expressões que usamos no nosso dia-a-dia e que várias vezes ouvimos dizer que estão erradas. Estarão mesmo? Será que posso dizer «amigo meu», «beijinhos grandes», «fazer a barba», «bicho-carpinteiro», «mal e porcamente», «queria um copo de água», «saudades tuas»?
Este é um dicionário diferente – ao mesmo tempo útil e divertido, é uma homenagem à língua portuguesa, tal como ela existe nas mãos de quem escreve e nos lábios de quem fala. O autor ataca tabus, desmonta mitos e defende com unhas e dentes a riqueza da língua em toda a sua variedade social.
Eis um livro para todas as mentes curiosas que gostam de olhar com prazer e atenção para a língua que falam. Tenha-o sempre à mão e esclareça dúvidas sobre o uso de certas expressões e as situações em que são ou não adequadas. Livre-se de preconceitos e defenda a nossa língua!
Título: Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português
Autor: Marco Neves
Editora: Guerra e Paz
Ano: 2018
Páginas: 232
Preço: €14,90
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Só se for você, falar uma língua bastarda, porque eu falo uma língua cantante, melodiosa e muito apreciada no restante do mundo. Em beleza e sonoridade, talvez a variante brasileira do português perca só para o italiano. Já fui questionado nos EUA, na França e mesmo em Portugal, sobre que língua eu falava, questionando por uma linguista universitária do Estado do Maine ; ou apenas elogios em Portugal ; ou onde tinha aprendido a falar com dicção correta, sem abastardamento do falar descuidado, e aprender o idioma francês. Lá na minha pequena cidade do interior de Minas Gerais.
Um artigo sem dúvida polémico, mas muito, muito interessante. Pena o autor não ter abordado os estragos que o novo AO fez à nossa língua.