Língua Portuguesa: existe um sotaque de Lisboa?
Existem variadíssimos sotaques, como é perfeitamente entendível, espalhados por todas as regiões de Portugal. Mas será que existe um sotaque de Lisboa?

À pergunta “Existe um sotaque de Lisboa?”, podemos responder muitas coisas, incluindo estas:

a)
Sim, uma parte dos lisboetas acha que a língua se divide entre quem fala “com pronúncia” e quem fala “sem pronúncia”. Uns quantos mais dados ao disparate dizem mesmo que os primeiros falam mal e os segundos tiveram a sorte de viver num sítio onde o ar ajuda a falar bem.
Esta noção não se limita aos lisboetas: muitas pessoas de fora de Lisboa dizem também que há quem fale com pronúncia e quem fale sem pronúncia.

b)
Quem estuda as línguas de forma um pouco mais rigorosa sabe o que se aprende nas primeiras aulas de Introdução à Linguística: todos temos um sotaque. O sotaque será, numa definição apressada, a forma como se fala em determinada região/cidade/classe social, etc.
Há quem tenha uma pronúncia muito individual. Há quem fale tal e qual se ouve na televisão. Mas não há rigorosamente ninguém que não tenha sotaque. Dizer que alguém não tem sotaque é o mesmo que dizer que há quem não tenha cor da pele…

Pois, claro que muitos lisboetas e arrabaldenses continuarão a dizer que isto é um disparate, que eles não têm pronúncia nenhuma! Mas, amigos, isto é como, de facto, as peles: todos diferentes, mas todos iguais.

Sim, todos os vossos amigos dizem o mesmo, que não têm sotaque, que isso é das outras regiões do país. Mas não é bem assim…
Agora, não me entendam mal: claro que sei bem qual o valor do sotaque considerado padrão. As pessoas podem e às vezes devem adaptar a pronúncia ao contexto.

Há quem fale duma maneira com os pais e doutra com os colegas de trabalho (sem notar…), outros “perdem sotaques” (=ganham sotaques de regiões onde o sotaque é mais parecido com a pronúncia padrão) e ainda outros “ganham sotaques” (=ganham sotaques de outras regiões).

Tudo isso é verdade, complexo, e muito interessante. Mas nada disto implica que o sotaque de Lisboa não exista.
Deixem-me acabar por contar uma história sobre um amigo do meu pai que tem uma pronúncia de Peniche muito marcada. Alguns, cegos com a ideia de que o mundo se divide entre quem tem e quem não tem sotaque, acham que ele fala assim porque não sabe falar bem, coitado.

Uma vez, estávamos os dois em Lisboa, quando ele se põe a imitar a pronúncia alfacinha. Digo-vos: era uma imitação perfeita! Ela sabia bem imitar o sotaque de Lesboa. Ora, como se pode imitar uma coisa que não existe?
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
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Claro que há sotaque em Lisboa (ou região de Lisboa), como em muitas outras regiões. Em última análise, se não houver sotaque não se consegue ouvir a fala. Quem não tem sotaque não tem fala. O sotaque é uma característica intrínseca da linguagem, corresponde ao modo muito próprio de como alguém pronuncia a linguagem. E o sotaque tem tanto de individual como, por colagem, por absorção, se torna também colectivo. Colectivo regional, o mais das vezes.
E não confundamos: um qualquer sotaque não é a única forma correcta de falar uma língua. O sotaque lisboeta, como alguns pretendem, não é a forma mais correcta de pronunciar o português, pois enferma de todos os desvios que um sotaque introduz na língua falada. O sotaque lisboeta é tão válido como os sotaques alentejano, algarvio, transmontano, portuense…
O sotaque, nas suas múltiplas formas de expressão, é uma riqueza linguística que todos temos o dever de preservar. E os sotaques regionais mais diferenciados deviam ser classificados como património nacional.