Neste excerto da Gramática para Todos, tento perceber o que torna inesquecível uma frase. Pedi ajuda a Eça e a Maria Velho da Costa.

Olhemos para o início de um conto de Eça – «Civilização»:
«Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.
Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, reflectindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champagne gelado mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tão feliz como o clássico Orestes. Do amor só experimentara o mel – esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira somente a de compreender bem as ideias gerais, e a «ponta do seu intelecto» (como diz o velho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta… E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros Pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas só palpasse palidez e ruína. Porquê?»
Leia com vagar. Repare nas frases – e nas palavras. Acompanhe a pontuação. Olhe para aquele «preciosamente», um advérbio que torna a frase inesquecível. Não parece ser o amigo que é precioso, mas a posse desse amigo – e o próprio verbo «possuir» associado a um amigo tem muito que se lhe diga… «Eu possuo preciosamente um amigo…» A preciosidade desta frase está também no inesperado da construção – tal como inesperada será a revelação do nome desse amigo dentro de parêntesis, como se o nome fosse pouco importante.
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Note agora o ritmo das frases, na composição de parágrafos com frases muito longas e outras curtíssimas, num encadeamento de sons, imagens e ideias que vai mexendo na nossa imaginação. Vamos desde um sujeito de 32 palavras, em que Eça constrói uma imagem muito detalhada para descrever a boa vida de Jacinto («Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, reflectindo apenas pedaços lustrosos de um céu de Verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma» – e só a seguir aparece o verbo principal da frase…), até uma seca frase final: «Porquê?»…
Temos ainda a mistura de palavras de mundos muito diferentes, que abanam o leitor entre sensações de prazer («champagne», «lindo rio») e referências a doenças («lombrigas», «sarampo»). Esta justaposição obriga-nos a sorrir. Ah, e logo a seguir às doenças infantis, temos os padecimentos adolescentes, que se transmitem por leitura de certos autores. Mais um sorriso preciosamente irónico nos nossos lábios, é o que é…
«E todavia» – estas conjunções (em aparente contradição) inflectem o texto e introduzem o mistério: tanta facilidade, é certo, mas tanto pessimismo, tanto aborrecimento. Temos então aqueles bocejos cavos e lentos – Eça quer ser exacto, mas também não quer mentir: não tem bem a certeza se serão três ou quatro.
Terminamos com os dedos finos de Jacinto a passar sobre as faces («como se nelas só palpasse palidez e ruína»). É fácil imaginar, como se lá estivéssemos, os dedos a passar pela cara de Jacinto, uma cara que nos aparece com a rigorosa expressão de enfado, ou talvez enfartamento ou algo que me escapa – aquilo que não consigo descrever, mas que Eça recria, nestas frases, dentro da nossa imaginação.
Há muito mais – quanto mais! – a dizer sobre estes parágrafos. Então se olharmos para o conto inteiro, teríamos livros a escrever…
Voltemos, no entanto, àquele «preciosamente». Há aqui algo diferente do que estaríamos à espera – muita da arte da literatura faz-se dessa fuga ao habitual, em conjugação com um controlo perfeito das frases, da variação vocabular, da repetição… Nem sempre um texto inesquecível, que deixa o coração a palpitar, se caracteriza pelo bom senso, por evitar as repetições, por cumprir o que é habitual na sintaxe portuguesa (embora raramente quebre uma proibição sintáctica).
Como exemplo, deixo aqui um exemplo extremo do uso da repetição. Leia este extracto do texto «Revolução e Mulheres», de Maria Velho da Costa:
«Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida azeda. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo. […]»
O parágrafo continua com muitas outras frases começadas por «elas…». Num texto diferente, do dia-a-dia, a repetição de «elas» seria um erro estilístico. Não é isso que temos aqui – o pronome repetido inúmeras vezes, sempre no início da frase, martela-nos o cansaço e a variedade das vidas delas num parágrafo que fica no ouvido durante muito tempo.
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Muitos outros escritores têm as suas estratégias para conseguir um determinado efeito no leitor. Não temos de gostar – mas convém não cair no erro grosseiro de considerar estas estratégias literárias distracções ou incorrecções.
Na literatura, o interessante começa onde termina a gramática. Temos alguns malabarismos verbais, mas temos também a ironia dum narrador divertido, vozes de várias personagens em confronto num só parágrafo, uma palavra que contém em si todo um meio social… É por isso que, para lá das regras que aqui tentei descrever – e que, repito, todos temos na cabeça –, devemos ler, ler muito, ler sem parar, saboreando as palavras e as frases dos bons livros, que são um dos grandes prazeres do mundo. Só assim podemos ter a esperança de criar frases inesquecíveis.
(Excerto do livro Gramática para Todos. Se quiser receber o livro em casa, pode encomendá-lo nesta página. Obrigado!)
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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