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3. É possível aprender o sentinelês
Ora, tendo em conta o que disse acima, temos outro facto sobre a tal língua desconhecida. Teoricamente, uma qualquer criança humana que fosse exposta ao idioma desde a nascença (viesse donde viesse) iria aprendê-la tão bem como um sentinelês.
Ou seja, teoricamente, podemos aprender aquela língua como podemos aprender qualquer língua do mundo — na prática, não é possível: porque ninguém consegue conversar com os seus falantes.
Não há muito a fazer: não sejamos tão loucos como o morto. Que fariam aquelas pessoas se aparecêssemos por lá aos gritos: «Ensinem-nos a vossa língua!»?
4. É uma língua complexa
As culturas são diferentes. Esta declaração não me parece muito difícil de aceitar… Podemos também dizer, sem grande medo de errar, que há culturas com instituições mais complexas do que outras.
No caso das línguas, não conhecemos o sentinelês, mas conhecemos as línguas de tribos isoladas noutros locais no mundo (ou mesmo nas ilhas vizinhas). E, ao contrário do que muitos pensam, essas línguas não são necessariamente mais simples do que as nossas línguas europeias, com séculos de escrita às costas.
Há línguas faladas por tribos isoladas com gramáticas que nos deixam de boca aberta: conjugações verbais ainda mais complicadas do que a nossa, subtilezas espantosas, distinções que nos parecem inacreditáveis.
Além disso, todas as línguas permitem criar um número infinito de frases. Todas as línguas têm uma gramática própria. Todas as línguas têm um vocabulário adaptado o seu uso — e a possibilidade de o expandir, se houver necessidade.
Por isso, não sabemos quase nada, mas sabemos que a língua dos Sentineleses tem uma gramática complexa (como todas as línguas), uma gramática que permite criar um sem-número de frases. Uma gramática que permite conversar, insultar, amar, divertir, aborrecer…
5. Aprender a língua não chega
Imaginemos que alguém se aproximava da ilha sabendo (por um estranho milagre) a língua daquela tribo. Diria palavras como «venho em paz» ou «por favor, não me matem já».
Será que sobreviveria?
Talvez ajudasse — mas nada garante. Afinal, saber a língua do outro não é receita certa para a paz.
Os problemas dos seres humanos não existem porque falamos línguas diferentes. Há tantas e tantas guerras entre gente que fala a mesma língua… E, da última vez que fui ver, a actividade dos tradutores (espécie na qual me incluo) parece não ter impedido a existência de guerras ao longo da História — e tradutores há desde sempre…
Diria até que, em certos casos, perceber o que outro diz pode ser uma emenda pior do que o soneto do contacto sem palavras. Se os Sentineleses tivessem compreendido que o senhor vinha para convencê-los a mudar de religião — e, já agora, a usar roupa, que aquilo de andar nu não está de acordo com os bons preceitos bíblicos —, talvez a seta que o matou tivesse sido atirada uns segundos mais cedo. Nunca se sabe.
Enfim: quando tentamos aprender a língua do outro, damos um bom passo. Mas é só um passo. As grandes barreiras que separam povos diferentes ou pessoas que vivem no mesmo prédio — às vezes na mesma casa — são outras: ideias diferentes, religiões diferentes, visões do mundo diferentes, ou talvez uma desconfiança ancestral ou um mal-entendido momentâneo.
A própria vontade de espalhar as nossas ideias pode ser uma causa de conflito: afinal, aquela morte teve muito que ver com a vontade de espalhar as crenças próprias entre quem deseja viver em paz na ilha onde sempre esteve.
Enfim, a verdade é que sou humano e, como tal curioso. Não me atrevo a lá ir, mas não resisto a imaginar: como será a língua dos Sentineleses?
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
Há muitas expressões que usamos no nosso dia-a-dia e que várias vezes ouvimos dizer que estão erradas. Estarão mesmo? Será que posso dizer «amigo meu», «beijinhos grandes», «fazer a barba», «bicho-carpinteiro», «mal e porcamente», «queria um copo de água», «saudades tuas»?
Este é um dicionário diferente – ao mesmo tempo útil e divertido, é uma homenagem à língua portuguesa, tal como ela existe nas mãos de quem escreve e nos lábios de quem fala. O autor ataca tabus, desmonta mitos e defende com unhas e dentes a riqueza da língua em toda a sua variedade social.
Eis um livro para todas as mentes curiosas que gostam de olhar com prazer e atenção para a língua que falam. Tenha-o sempre à mão e esclareça dúvidas sobre o uso de certas expressões e as situações em que são ou não adequadas. Livre-se de preconceitos e defenda a nossa língua!
Título: Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português
Autor: Marco Neves
Editora: Guerra e Paz
Ano: 2018
Páginas: 232
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