Já imaginou como será a língua dos Sentineleses?
Enfim, a verdade é que sou humano e, como tal curioso. Não me atrevo a lá ir, mas não resisto a imaginar: como será a língua dos Sentineleses?

Cada doido, sua mania. Oiço falar dos Sentineleses, a tribo isolada que matou um maluc… missionário que lá quis ir — e a primeira coisa que penso é: como será a língua deles?
Ora, sabemos pouco sobre essa língua, mas sabemos algumas coisas…
1. É uma língua que os vizinhos não compreendem

Não, não são só os missionários vindos de longe que não conseguem compreender frases simples como «Faça o favor de se afastar se não quer levar com uma seta na tromba.» ou «Esse Jesus parece ser boa pessoa, mas temos mais que fazer.».
Num dos poucos contactos entre os Sentineleses e os habitantes das ilhas em redor, os vizinhos conseguiram perceber uma coisa: não percebiam nada do que eles diziam — ou melhor, do que eles lhes gritavam de setas alçadas. Ou seja, mesmo que as línguas fossem, há uns milénios, parecidas, os séculos e séculos de isolamento afastaram-nas irremediavelmente.
Não é nada de espantar. Sem um oceano em redor, as línguas dos vários povos latinos afastaram-se muito em dois míseros milénios. O que dizer de povos a viver em ilhas há tanto tempo, com contactos muito esporádicos?
2. É uma língua que, enfim, existe…

Não os compreendemos, mas sabemos uma coisa: os Sentineleses têm uma língua, como acontece com todos os grupos de seres humanos. Parece que nem todos usam roupa, por exemplo. Mas língua? Ainda está por encontrar a tribo que se tenha esquecido de falar.
Como é que isto aconteceu? Como é que a linguagem se tornou essencial aos seres humanos?
Há duas correntes (simplificando um pouco). Alguns linguistas sublinham a maneira como a linguagem é uma ferramenta cultural, inventada em certo ponto da nossa História. No fundo, o uso da linguagem será como a roda: uma vez inventada, tornou-se tão útil que ninguém a dispensa.
Mas não nascemos — segundo esta perspectiva — com algum tipo de mecanismo linguístico impresso no cérebro. Se alguém quiser investigar um pouco o que dizem estes linguistas, pode começar pelo nome mais famoso: Daniel L. Everett (por exemplo, no seu livro Language: The Cultural Tool).
Outros linguistas sublinham o carácter biológico da linguagem: temos aparelhos fonadores e cérebros adaptados ao uso da linguagem — basta pensar que as nossas gargantas seriam muito diferentes se não fosse a necessidade de falar.
Afinal, nós temos a infeliz capacidade de nos engasgarmos (ao contrário dos outros símios) porque as gargantas estão feitas para falar. Quando alguém morre com um pedaço de pão na garganta, está a pagar com a vida o preço de poder falar.
Isto, claro, não significa que as línguas não sejam artefactos culturais — mas usam um mecanismo biológico (o aparelho fonador e uma peculiar arquitectura do cérebro) partilhado por todos os humanos. Um dos linguistas que propõem esta perspectiva é Steven Pinker (por exemplo, no seu livro The Language Instinct).
O debate é muito interessante — e não vale a pena fingir que posso dar aqui uma imagem minimamente realista dos argumentos de uns e outros. Mas posso apontar para um outro livro, chamado The Evolution of Everything, de Matt Ridley. Num dos capítulos, o autor traça uma imagem que junta estas duas perspectivas e me parece muito razoável.
Tal como no caso da invenção do controlo do fogo, a invenção da linguagem teve implicações biológicas. Como passámos a cozinhar, as nossas mandíbulas tornaram-se diferentes das dos outros símios. Ora, uma vez inventada a linguagem, os nossos corpos e os nossos cérebros começaram a mudar.
Seja como for, não há povo que não tenha uma ou mais línguas. E, como aconteceu há poucas décadas com a língua gestual nicaraguense, se um grupo de pessoas vive em conjunto sem que alguém lhes ensine uma língua, começam a desenvolver uma língua própria.
Sem pretender resolver um debate que irá continuar por muitas e boas décadas, a linguagem humana parece ser um facto cultural e biológico. Pelo menos, parece que os diferentes idiomas são transmitidos culturalmente, mas todos os seres humanos têm cérebros e bocas biologicamente preparados para falar.
(cont.)