Desta feita, vamos contar-lhe a história Claudiana da Natividade, o homem que foi freira. Sempre existiram pessoas que tiveram vidas surpreendentes. Ao longo da história de Portugal, alguns portugueses destacaram-se por episódios insólitos. Houve acontecimentos inesperados com desenlaces que merecem ter outro reconhecimento do povo.
No presente artigo, iremos centrar a nossa atenção numa pessoa que está ligada a uma história maravilhosa. Já ouviu falar de Claudiana da Natividade? Ela era ele… De freira a pseudo-hermafrodita, a vida de Claudiana da Natividade dava um filme…
Era uma vez um convento cheio de freiras. A vida no convento não era nada fácil e mais difícil se tornava para pessoas que escondiam atitudes nada religiosas… Algumas freiras do convento de Santa Cruz de Vila Viçosa perceberam que algo se passava e identificaram o comportamento esquisito de uma das irmãs. Assim, elas queixaram-se à madre superior.

Sóror Claudiana da Natividade tinha algo debaixo do hábito que perturbava as restantes residentes do convento de Santa Cruz de Vila Viçosa… Não era algo incomum, mas era algo que nenhuma freira poderia ter… Era algo que só os homens tinham!
Os rumores sobre a freira homem foram postos a circular. Havia uma freira que possuía “natureza de homem”. Desta forma, o frei Jorge de Sande tinha de intervir. Ele tinha sido eleito provincial da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, no mês de maio de 1622. O problema necessitava de uma solução. Não podia ser mantido em segredo. Adiar a resolução de nada adiantava.
A prioresa do convento de Santa Cruz não via alternativa perante a quebra do silêncio. Por isso, ela levou o assunto ao responsável pelos agostinhos, após se terem seguido as regras da Ordem. Na época, as religiosas eram incentivadas a denunciar irmãs que prevaricavam, se elas persistissem no erro. Desta forma, o assunto terá chegado rapidamente à madre superiora. De modo a evitar que o assunto chegasse ao conhecimento das outras, estava estabelecido que a responsável maior pudesse atuar “secretamente”, com celeridade.
A freira homem não poderia desmentir a sua condição física. Por isso, tal como manda a regra de Santo Agostinho para as mulheres, Claudiana terá sido exposta perante as residentes, com o objetivo de que, “diante de todas, pudesse não por uma testemunha ser acusada, mas por duas ou três convencida”.
Se de outra prevaricação se tratasse, a madre superiora iria aplicar um corretivo. Claudiana só seria expulsa se se recusasse a cumpri-lo. Contudo, este caso era especial, não se resolveria desta forma. Seria necessária uma grande cumplicidade para se conseguir manter um homem num lugar religioso reservado exclusivamente ao sexo feminino.
Esta casa religiosa foi erguida para agostinhas, tendo surgido devido a uma desavença. Segundo se conta, a sua origem deve-se a um diferendo entre o duque dom Jaime e a Margarida de Jesus, fundadora e filha de nobres servidores da Casa de Bragança. Este convento revelava-se um Estado dentro do Estado, que tinha a sua sede na vila alentejana. No entanto, desde o tempo em que a madre superiora recusara as ofertas luxuosas do duque (que foi o quarto a ostentar o título da mais importante) que não se conhecia maior perturbação.
Naturalmente, nunca nada de remotamente parecido ao que aconteceu, com Claudiana, se passara no Convento de Santa Cruz de Vila Viçosa, nem antes, nem depois. Esta construção religiosa tinha quase cem anos de existência à data dos acontecimentos. A prioresa Mariana Micaella contou em 1754 que a sóror Margarida “sempre quis que aquela casa cheirasse a pobreza”. Dom Jaime tinha assassinado a mulher 10 anos antes, por desconfiança de adultério.
Ele pretendia erguer um convento para abrigar mulheres da alta nobreza da região. Esta construção religiosa deveria ficar próxima ao seu palácio. O desentendimento torna-se mais visível, quando o duque revelava a sua vontade de que todas as duquesas “tivessem passadiço para o convento para entrarem nele todas as vezes que quisessem”.
Por isso, Margarida de Jesus deixou o Convento das Chagas. Ela foi ocupar umas casas do padre Mendo Rodrigues, que se encontravam um pouco mais afastadas. Margarida de Jesus foi com a sua sobrinha Leonor (e sucessora) para a Corredoura. Em 1530, ela fez inaugurar o Convento de Santa Cruz de Vila Viçosa. No início, esta construção religiosa contaria com 12 freiras. No entanto, no século XVIII, chegou a albergar perto de 100 mulheres.
Mas, voltando à história, quando o caso chegou ao frei Jorge de Sande, ele usava o hábito dos Agostinhos há 4 décadas. Tendo sido eleito provincial há poucos meses, frei Jorge de Sande resolveu mandar fazer “um sumário de testemunhas”, “para acudir aos rumores e outros avisos”.
Ele tinha instruído um processo durante o qual Claudiana da Natividade sujeitou-se a ser examinada por parteiras. Nessa avaliação, ela terá confessado a sua condição. Ela terá defendido que “se meteu religiosa por saber de si, que não tinha vaso natural como as mais mulheres para poder casar”.
Ao longo de vários séculos ficar “encalhada” ou “para tia”, representou um problema para as mulheres. A sociedade condenava estas mulheres à vergonha. Na época, era o casamento que lhes garantia o futuro, com raríssimas exceções a isso. Por isso, nesse tempo, o recolhimento num mosteiro significava assegurar uma vida melhor, fazendo ou não votos religiosos. Muitas mulheres eram obrigadas a ficar em clausura por causa dos pais “acharem algum defeito” nas filhas, só para agradar ao Deus de que eram devotos.
Claudiana sentia-se por dentro tão mulher como as suas companheiras freiras. No entanto, ela sabia reconhecer que não o era fisicamente, pelo menos do modo considerado normal. Segundo a confissão, que se encontra nos autos, Claudiana revelava ter “vergonha do pejo natural”. Era por essa razão que Claudiana se escondia por baixo do hábito religioso, apresentando um largo vestido negro, ajustado por um cinto. Claudiana também terá defendido, em seu prejuízo, que tinha consciência de que “as ações assim naturais, como deleitosas seminis efusivas, as fazia pela natureza de homem, que algumas vezes tinha recolhida e outras se lhe saía para fora, quando se lhe alterava”.
As parteiras foram examinar Claudiana e concluíram não ter ela, “de modo algum, natureza de mulher, nem vaso seminis receptitio, antes, em lugar do dito vaso, apontar natureza de homem”.
Na sentença, é referido que, quando Claudiana viu o seu segredo ser descoberto, declarou que “conhecia de si não ser mulher, senão homem”, e pedia que “se lhe desse remédio conveniente à sua alma e à sua honra”.
No dia 16 de dezembro de 1622, o frei Jorge de Sande estava a sentenciar a sóror. A sentença de Claudiana da Natividade foi proferida após o condenado ter feito votos e de ter optado pelo nome de Claudiana da Natividade, para viver em clausura.
Ele que foi expulso do convento “por ser homem, e não mulher” acabaria por regressar ao mesmo local por decisão papal. Não se pôde queixar da sentença, pois até teve muita sorte. Naquela época, casos destes levavam à condenação de pena de morte. Poderia também ser condenado ao degredo para possessões africanas mais agrestes, antecedidas por algumas sessões de tortura.
Se Claudiana não tivesse optado por confessar a “sua culpa”, dizendo-se simultaneamente vítima e não culpada, o provincial teria de remeter o processo para a Inquisição de Évora. A sentença seria outra se este tribunal religioso tivesse tomado conta do caso. Provavelmente, Claudiana seria condenada à fogueira ou ao degredo em São Tomé ou Angola. Por aqui, a sobrevivência era quase impossível para europeus habituados a climas pouco agrestes.
Provavelmente, Claudiana seria familiar de alguma das freiras. Terá sido por essa razão que se gerou um silêncio solidário, além do imposto pelas regras da Ordem dos Agostinhos? Seria Claudiana oriunda de famílias importantes? Terá sido protegida por alguém influente ou terá sido alguém a quem a madre superiora resolveu dar abrigo?
Não há uma resposta segura para estas questões. Ela seguramente terá tido alguma proteção. Após terem passado 15 anos, uma apelação foi apresentada ao Papa e Claudiana que, tinha sido condenada à expulsão, passou a ser reintegrada.
O investigador Asdrúbal de Aguiar explicou: “Juízes delegados do Papa tiveram de pronunciar-se sobre o caso. E, ou que os doutíssimos teólogos nas compulsas feitas no direito canónico achassem desculpa para a freira ou que menos ríspidos ou mais tolerantes não encontrassem verdadeira culpa ou ainda que supusessem estarem senão extintas pelo menos amortecidas as naturais manifestações daquela natureza descomunal, pois o seu juízo foi solicitado passados 15 anos da expulsão da ordem, tiveram como melhor resolução mandarem recolher outra vez a religiosa na clausura revogando a sentença do provincial, o que logo foi feito”.
No final do século XIX, o padre Joaquim José da Rocha Espanca (que era tio da famosa poetisa Florbela Espanca) contou, num dos 36 volumes das suas “Memórias de Vila Viçosa”, que o convento das agostinhas conseguiu sobreviver à extinção das ordens religiosas feita em 1834 pelo rei Pedro IV, isto, até à morte da sua última ocupante, cumprindo o que ficou estabelecido.
Em 1879, por altura da morte da superiora, verificou-se outro contratempo. Fez-se regressar ao convento uma agostinha de 78 anos, convocada “à pressão”, uma vez que ela há 48 anos tinha abandonado o convento por questões de saúde. Esta foi uma estratégia que visou assegurar a continuidade do convento. Este rocambolesco episódio resultou, tendo contribuído para que o convento se mantivesse na Ordem por mais quatro anos.
Claudiana foi considerada pseudo-hermafrodita séculos mais tarde. Numa breve análise datada dos anos de 1920, havia outros conhecimentos. Por isso, quando a medicina portuguesa já começava a dar mais atenção à “ciência sexual”, Claudiana foi tida como uma pseudo-hermafrodita.
Este é um caso insólito que atraiu investigadores estrangeiros. O caso de Claudiana da Natividade é inédito pela data e pela sentença. Ele foi escolhido, através da abordagem do investigador Asdrúbal de Aguiar, pelos autores de “Sex, Identity and Hermaphrodites in Iberia, 1500-1800”. Serviu para iniciar este estudo mais centrado em Espanha do que em Portugal. O seu objetivo era o “aprofundamento das teorias” sobre hermafroditismo e mudanças de sexo durante os três séculos em causa.
Asdrúbal de Aguiar terá sido o professor de medicina legal que contribuiu de forma mais aprofundada para o desenvolvimento da “ciência sexual”. Ele defendeu que a madre superiora atrapalhou-se com o “extraordinário caso”, ficando sem saber qual a melhor forma de o resolver.
Claudiana terá sido “algumas vezes apalpada e vista por várias pessoas que lhe acharam natureza de homem”. Ocasionalmente, terá sido ela a dar a entender, mas noutras ele “se retratava e encobria”. Num determinado momento, a situação tornou-se mais delicada. Por isso, o provincial decidiu que “se devia, com diligência, atalhar os perigos que se podiam temer”.
Asdrúbal António de Aguiar refere no seu texto “Pseudo-hermafroditismo feminino” (Caso português do século XVII), que o procedimento de uma irmã “contrastava com o das outras religiosas de modo que o sossego da clausura era escandalosamente perturbado. Seria mais próprio de mancebo afoito em aventuras amorosas que de virgem dada à contemplação mística o comportamento da tal freira”. O médico legista publicou o artigo na revista “Archivo de Medicina Legal”, em 1928.
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Asdrúbal de Aguiar explicava ainda na sua análise: “Os mais ilustres juriconsultos, os mais conspícuos físicos, os mais abalizados doutores da igreja, os mais graves e virtuosos cronistas encanecidos nas leituras dos velhos códices e incunábulos, os mais doutos e letrados mestres de dezenas de universidades dedicavam horas e horas a decidir essas numerosas questões. E dos seus estudos, de que, diga-se em boa e sã verdade, nada resultava de definitivo, brotavam novas dúvidas, nasciam novos embargos e enredava-se mais o assunto.”
É desconhecido o nome de batismo de Claudiana. Esse nome não consta na sentença. Para ela, essa identidade não tinha relevância. Ele tomou o hábito porque queria outra vida. Ela fez-se noviça e professou durante anos. Nunca até esse ano alguém desconfiou do seu surpreendente “apêndice”. Ela já se encontrava na casa dos vinte quando se soube.
Para conseguir manter esse segredo durante tanto tempo, foi preciso grande arte. Também terá sido necessária grande capacidade de persuasão para que eventuais conhecedores da realidade mantivessem a descrição. É possível que nunca tenha querido ter sido homem. Pelo menos foi isso que deu a entender, tendo defendido sentir-se envergonhada com a sua anatomia. Ela chegou a solicitar “remédio para a alma”. Também é possível que o tenha feito com outras motivações.
Provavelmente, Claudiana nunca chegou sequer a sair do convento. Vila Viçosa teria cerca de 200 habitantes. Na época, dada a presença da Casa de Bragança, aquela era uma terra importante. Naturalmente, a história terá corrido de boca e boca. No entanto, acabou por desaparecer.
Sobre a data da morte do homem que foi freira nada se sabe, nem sequer se sabe que homem Claudiana foi antes de se ter tornado numa freira… É incrível como há histórias em Portugal que muitos portugueses desconhecem. Se o nosso país tivesse uma indústria como Hollywood, seguramente que esta história de Claudiana teria dado um filme popular…
Parabéns !!!! por essa história incrível do homem que foi freira. Deveriam fazer um filme pois seria um grande sucesso.