Na época, foram vários os jornais a relatar a história da mulher que se vestiu de homem. O seu nome era Emília Maria Alenquer e tinha 26 anos quando se tornou notícia. Fez-se passar por homem para vingar o irmão de uma forma insólita, devido a questões laborais.
Emília Maria tentou mesmo matar o chefe e, por isso, o resultado era o expectável: foi presa na cadeia do Aljube. Tudo se passou há mais de um século, em princípios de fevereiro de 1915. Uma história desconhecida para muitos, mas que conta como a vingança pode ter consequências nefastas para quem a pratica, condenando para toda a vida o vingador ou, neste caso, a vingadora.

A origem de Emília Maria
José Lopes Alenquer era operário numa fábrica de Fuertes Peres, no Beato, em Lisboa. Juntamente com ele trabalhavam duas irmãs. A fábrica funcionava nas cocheiras e os escritórios nos salões nobres do edifício, chamado de Palácio da Mitra, por ter servido de asilo para pobres, em 1933. No entanto, no período pós-República, ali funcionava uma espécie de polo industrial.
Os dois irmãos, José e Emília, trabalhavam no isolamento de garrafões com corticite. José tinha 28 anos e trabalhava há 7 anos naquela fábrica. No entanto, um colega mais novo e com menos tempo de casa, acabou por ascender de cargo mais depressa que José.
A empresa prosperava, tendo à época um sócio capitalista, Ernesto Henrique Seixas, homem rico que queria garantir a evolução e o crescimento do negócio. Porém, a promoção do colega de José Alenquer foi algo que não caiu bem aos membros daquela família.
O mal-estar, entre o encarregado e José, era cada vez maior. Conta-se que, um dia, ambos levavam o vasilhame para um depósito, com José a puxar a carroça e o superior a controlar as operações. A certa altura, José ficou cansado e, não gostando da postura do seu encarregado, decidiu que não faria mais o transporte do material.
À época, tal trabalho estava a ser muito contestado, por ser considerado vergonhoso e desumano. Porém, ainda não era proibido por lei e, por isso, o encarregado tinha autoridade para obrigar José a cumprir aquela tarefa. Assim, e sob ameaça de ser despedido, José acabou por retomar aquela dura atividade.
A vingança de Emília Maria
Todavia, toda esta história chegou aos ouvidos de Emília Maria, irmã de José. Tal como o irmão, Emília Maria não estava agradada em ter um chefe mais novo a dar-lhes ordens. Porém, o medo de perder o trabalho falava mais alto, numa altura em que o desemprego abundava e em que era necessário que todos trabalhassem para a família, neste caso os irmãos, para conseguirem sobreviver.
Naquele tempo, a indústria passava por uma crise, afetando diversos setores, também devido às consequências da guerra. Estes irmãos eram solteiros (Emília Maria era divorciada, tendo sido das primeiras mulheres a separar-se ao abrigo da liberal e idealista lei do divórcio de 1910). Logo, dependia de cada um deles o sustento da casa.
Os salários semanais dos operários eram baixos (entre 80 centavos e 2 escudos e quarenta) e não permitiam que as pessoas vivessem com grande margem e folga. Neste período, os preços de muitos produtos subiram, como foi o caso do pão, e também havia bens essenciais que começavam a faltar. Os pequenos negócios iam encerrando todos os dias e os preços estavam cada vez mais inflacionados.
“De dia para dia, maiores e mais terríveis são os efeitos da tremenda e devastadora guerra e cujo fim ainda vem longe, encarecendo de mais em mais todos os artigos indispensáveis à vida e a um ponto tal que muito já dobraram e triplicaram o preço”, escrevia o “Diário de Notícias”, numa peça intitulada “Efeitos da guerra”.
O que aconteceu a 5 de fevereiro de 1915
Neste dia, que era uma quinta-feira, Emília Maria, uma rapariga combativa e que se dizia ter “por hábito exercer certas vinganças sobre o pessoal” terá saído da fábrica a correr, rumo a casa.
Aí, trocou de roupa, escolhendo um fato do irmão. Colocou um chapéu na cabeça, pegou no revólver e retornou à fábrica, aguardando que o seu encarregado saísse. Quando o chefe se preparava para abandonar a fábrica e seguir até à estação de comboios, no Braço de Prata, Emília Maria desfechou-lhe um tiro, acertando-lhe numa perna.
Logo apareceram muitas pessoas e mesmo a polícia para deter o agressor ou, neste caso, agressora. Inicialmente, não houve quaisquer suspeitas de que se trataria de uma mulher, só mais tarde se percebeu qual a identidade do suspeito: “Enquanto o ferido seguia para o hospital, a criatura era levada para a esquadra, averiguando-se ali tratar-se de uma irmã do Alenquer, que, para o vingar, se vestiu com um dos seus fatos e foi esperar o Lavrador”, contou “O Século”.
No Governo Civil, Emília teve de mudar de roupa, tendo nesse momento confessado que o encarregado lhe tinha desgraçado a vida.
O encarregado foi levado para o Hospital de São José, tendo tido alta, mas tendo sido depois internado, por ter piorado a sua condição. De resto, nada mais se sabe. Ou seja, não se sabe se o chefe ficou com alguma deficiência ou incapacidade naquela perna, se a terá perdido ou se até terá mesmo morrido.
Certo é que Emília Maria foi acusada e presa, sem admissão de fiança, no Aljube. Provavelmente, terá sido condenada por homicídio premeditado ou homicídio frustrado. No primeiro caso, teria de cumprir uma pena de 8 anos de prisão e 20 de degredo. No segundo caso, passaria o mesmo tempo na cadeia, mas apenas metade numa possessão africana. Os seus irmãos continuaram a trabalhar na fábrica, por vontade dos patrões.
Fique a conhecer mais sobre histórias de mulheres portuguesas:
- Mulheres que mudaram a história de Portugal
- Mulheres portuguesas notáveis que honram Portugal
- Mulheres mais marcantes da História de Portugal
Outras mulheres que se disfarçaram de homem
À época era relativamente comum as mulheres mascararem-se de homens para praticarem crimes. Há algumas histórias que ilustram isso mesmo. Maria dos Prazeres, por exemplo, foi presa enquanto vestia roupas de homem, usando até um bigode postiço. O crime: era suspeita de furtar galinhas.
Já o crime de Luísa da Gama Lima foi mesmo “andar nos Olivais vestida de homem”. Foi detida quando levava o filho ao colo. É que no código penal da época, podia ler-se: “Aquele que se vestir e andar em trajos próprios de diferente sexo, publicamente e com intenção de fazer crer que lhe pertencem, ou que do mesmo modo trouxer uniforme próprio de um emprego publico ou alguma condecoração que não lhe pertença, será condenado em prisão até seis meses e multa até um mês.”
Outra história é a de Antónia da Conceição que se vestiu de negro, enrolou-se num xaile e foi para a rua para confirmar se o namorado a traía ou não. Só que levantou as suspeitas de uma criança e, assim, acabou por ir parar à esquadra, onde teve de explicar o porquê de envergar tais trajes.
Histórias curiosas que, por entre crimes mais ou menos graves, mostram como o disfarce, neste caso de género, era um recurso muito utilizado no passado.