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O Estado da Índia só poderia dispor de meios humanos significativos se fosse capaz de os gerar na própria Ásia, em vez de estar dependente dos homens que chegavam anualmente nas armadas da Índia
Enquanto construía um império pluri-continental, a coroa lusa nunca deixou sair o seu potencial reprodutor, a não ser em porções minúsculas, como foi o caso de algumas mulheres que iam para o Brasil, ou das órfãs d’el-rei que foram alimentar uma elite branca em Goa, no século XVII. Ciente dessa limitação, Albuquerque compreendeu que o Estado da Índia só poderia dispor de meios humanos significativos se fosse capaz de os gerar na própria Ásia, em vez de estar dependente dos homens que chegavam anualmente nas armadas da Índia. Assim, a partir de 1510 a Índia Portuguesa passou a contar com os casados, esses luso-asiáticos, com algum sangue português nas veias, e com uma cultura cristã, mas que tinham uma feição oriental (que facilitava a sua circulação pelos portos da Ásia), que eram pelo menos bilingues desde o nascimento, e que estavam familiarizados com a cultura dos seus antepassados pela via materna.

No ano seguinte de 1511, Albuquerque conquistou Malaca, através de uma operação militar arrojada. Nunca antes na História uma força expedicionária actuara de forma tão desapoiada, tão longe das suas bases mais próximas, e sem esperança de reforços e sem poder sequer recuar para o ponto de partida durante meses. D. Manuel I sempre se interessara por Malaca, sobretudo enquanto não se confirmou a inteireza da América e se receou que os castelhanos ou outros europeus pudessem alcançar a Ásia pela via do Ocidente. Ou seja, o interesse do monarca por Malaca relacionava-se sobretudo com as rivalidades europeias, embora já começasse a ganhar interesse pela China quando enviou uma expedição directamente à Malásia, em 1508.
Indiferente à intriga política que urdia contra si no reino, o Terribil prosseguiu a sua política de “asiatização” do Estado da Índia e submeteu Ormuz, em 1515, morrendo em Dezembro desse ano.
Afonso de Albuquerque, porém, encarou a conquista de Malaca pela mesma perspectiva com que gizara a incorporação de Goa no Estado da Índia – o comércio inter-asiático e a promoção de uma sociedade mestiça. Malaca, que começara por ser vista como uma barricada para conter o acesso dos rivais europeus à Ásia (tarefa que, afinal, foi desempenhada pelo próprio continente americano) acabou por se transformar numa placa giratória que articulava as redes mercantis do Índico Ocidental, do Golfo de Bengala, da Insulíndia e do Mar da China; um empório extraordinário por onde passou grande parte da riqueza que alimentou os cofres do Estado da Índia, e onde cresceu outra comunidade luso-asiática que depois se estendeu a Macau.
Depois de Malaca, Albuquerque neutralizou o contra-ataque muçulmano a Goa, em 1512, e em 1513 atacou, finalmente o Mar Vermelho, mas foi mal sucedido, o que frustrou o rei e levou-o a não reconduzir o governador para um terceiro mandato. Indiferente à intriga política que urdia contra si no reino, o Terribil prosseguiu a sua política de “asiatização” do Estado da Índia e submeteu Ormuz, em 1515, morrendo em Dezembro desse ano.

Moribundo, ainda soube que o rei nomeara Lopo Soares de Albergaria para o substituir como governador da Índia, mas não soube decerto que a sua política de inserção de Portugal na Ásia começara a ganhar força no ânimo do próprio D. Manuel I. Com efeito, nesse ano de 1515, junto com a armada de Lopo Soares, partiu para a Índia uma esquadra com a missão de levar o primeiro embaixador português à China, o que se concretizaria dois anos mais tarde, quando Fernão Peres de Andrade desembarcou em Cantão a embaixada chefiada por Tomé Pires.
O império manuelino foi sempre uma entidade vocacionada para a hegemonia marítima, pois mesmo Goa e Malaca, os primeiros focos de uma sociedade ultramarina de casados mestiçados, eram meros enclaves em território hostil. No entanto, absorveu o paradigma de mudança desencadeado por Afonso de Albuquerque
Esta decisão do monarca de iniciar uma aproximação diplomática à China inseria-se, sem dúvida, na mesma lógica que levara Albuquerque a conquistar Goa e Malaca e a submeter Ormuz. Nos anos seguintes, D. Manuel I tentou que os Portugueses passassem a ser os principais fornecedores de especiarias ao Império Chinês, o que não se relacionava, obviamente, com o seu (persistente) sonho de Cruzada à Terra Santa. O império manuelino foi sempre uma entidade vocacionada exclusivamente para a hegemonia marítima, pois mesmo Goa e Malaca, os primeiros focos de uma sociedade ultramarina de casados mestiçados, eram meros enclaves em território hostil. No entanto, absorveu o paradigma de mudança desencadeado por Afonso de Albuquerque, e o Estado da Índia foi uma entidade economicamente rentável enquanto os três pilares dominados pelo Terribil continuaram na posse da coroa portuguesa.
Duas efemérides e a natureza do nosso país
Assim, as duas efemérides que se evocam este ano de 2015, os 600 anos da conquista de Ceuta e os 500 anos da morte de Afonso de Albuquerque, ajudam-nos a compreender a própria natureza do nosso país.
Há 600 anos, Portugal buscava ainda a sua configuração definitiva, ao mesmo tempo que lutava por garantir o seu espaço vital e que espreitava mais além. E ao completar o seu acomodamento ao mundo, ao definir o seu espaço no seio do mundo euro-mediterrânico, logo se tornou numa potência atlântica, e inventou o próprio Atlântico, transformando o ignoto e temido Mar Oceano num eixo de comunicações e num espaço com forma própria, ao mesmo tempo que transformava de vez o seu carácter periférico numa nova centralidade.
Não se pode explicar a modernidade e a globalização sem ter em conta o impulso visionário do Infante D. Henrique e o acto heroico da tripulação de Gil Eanes, que soube vencer o medo e desfazer num ápice as lendas do Mar Tenebroso.
D. João I cumpriu a História ao concluir a gesta da formação de Portugal, levando os seus homens até ao Estreito e sancionando a ocupação da Madeira, enquanto o génio irrequieto e pertinaz do infante D. Henrique abria o caminho para uma nova era, que fez de Portugal um dos protagonistas da História Universal, pois não se pode explicar a modernidade e a globalização sem ter em conta o seu impulso visionário e o acto heroico da tripulação de Gil Eanes, que soube vencer o medo e desfazer num ápice as lendas do Mar Tenebroso.
Há 500 anos, a presença portuguesa pelo mundo alcançava quase a sua amplitude máxima, pois os oficiais da coroa já andavam pelas praias do Brasil e já negociavam nos portos da China. Durante cem anos os navegadores portugueses desbravaram meio mundo, desde a Terra Nova até às águas longínquas de Timor. Abriram novos negócios, apropriaram-se de outros e ganharam as posições necessárias para dominar os mares, mas agora estavam aptos para aprofundar esse movimento pioneiro. Começavam, finalmente, a libertar-se da velha tradição mediterrânica que os tinha levado a Ceuta; era o tempo de focar o império nos oceanos e de ganhar territórios e as suas gentes.
Foi o génio de Albuquerque que provocou nova aceleração tal como o infante fizera há quase cem anos: ao ser o primeiro a libertar-se das grilhetas mentais da centralidade do Mediterrâneo concebeu o destino secular de Portugal na Ásia e ao promover os casamentos mistos intuiu o que seria a maior força do Império Português pelos séculos vindouros
D. Manuel I concluiu a tarefa a que a coroa se propusera desde que o regente D. Pedro proclamou o senhorio do mar, em 1443, e que ganhara limites concretos pelo Tratado de Tordesilhas de 1494. Foi no seu reinado que os horizontes se alargaram ao Brasil e à China e foi ao penetrar no Índico que consumou uma prática imperialista que já se adivinhava nos seus antecessores. Portugal era então um país rico pela sua capacidade de obter no exterior o que lhe faltava no seu espaço vital.
Mas foi o génio de Afonso de Albuquerque que provocou nova aceleração tal como o infante fizera há quase cem anos; ao ser o primeiro a libertar-se das grilhetas mentais da centralidade do Mediterrâneo concebeu o destino secular de Portugal na Ásia e ao promover os casamentos mistos intuiu o que seria a maior força do Império Português pelos séculos vindouros – a sua capacidade de negociação com povos de todos os continentes e a sua disponibilidade para criar um império assente na supremacia d’el-rei de Portugal e dos seus oficiais mas forjado e sustentado por uma massa mestiçada que tanto falava tupi, como ovimbundo, concanim, malaiala, malaio, chinês ou japonês, mas que rezava a um só Deus.
Passados todos estes séculos, Portugal, despojado das conquistas posteriores a 1434, persiste como país uno entre o continente e os arquipélagos adjacentes, sem ter perdido as suas ligações ao mar e ao mundo por onde os seus oficiais, mercadores e clérigos andaram anos a fio.

Não foi certamente por acaso, que a última eleição de Portugal como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU foi obtida predominantemente com votos dos países do Terceiro Mundo; como não é por acaso que é no mar que Portugal espera poder ganhar novos espaços e novas riquezas, seja na luta pelo subsolo das áreas adjacentes à sua linha de costa, o que devido aos arquipélagos lhe pode proporcionar uma nova fronteira marítima que tornará num dos países mais extensos do mundo, seja reinventando a centralidade do seu litoral continental conseguindo transformar Sines numa das grandes escápulas do comércio marítimo.
600 anos depois de Ceuta e 500 anos depois de Albuquerque, Portugal é o mesmo, com a força que sempre teve para perdurar como entidade política independente apesar da sua pequenez … assim os próprios Portugueses o percebam.
Autor: João Paulo Oliveira e Costa (Historiador, professor da FCSH da Universidade Nova de Lisboa)
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