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A visão e ambição de Afonso de Albuquerque
Como referi, a política imperialista manuelina tinha como objectivo último o Mediterrâneo Oriental e a Cruzada, na senda do que fora já o sonho imperial de D. João II. Quase cem anos depois de Ceuta, a coroa lusa, desbravadora do mar oceano, continuava ligada às suas raízes ancestrais e à geo-estratégia euro-mediterrânica. Os espaços que se tinham tornado acessíveis ou descobertos pelos seus exploradores ainda eram entendidos sobretudo como simples meios para atingir os objectivos de sempre.
As ilhas atlânticas e a costa do Brasil serviam para assegurar a hegemonia marítima e o monopólio da Rota do Cabo, as duas fortalezas a sul do Bojador serviam para o controlo do ouro e as intervenções no reino de Fez eram entendidas como o prolongamento da Reconquista. Por isso, a ordem que Afonso de Albuquerque tinha para cumprir ao assumir o governo da Índia era a de atacar o Mar Vermelho para vibrar o golpe de misericórdia no agonizante Império Mameluco. Albuquerque, porém, tinha uma visão mais completa do mundo e, em especial da Ásia, e imaginou um outro destino para a presença portuguesa naquelas paragens do Oriente.
Sob o pretexto de que os sobreviventes da armada egípcia, que fora derrotada por D. Francisco de Almeida, se tinham acantonado em Goa, o Terribil propôs ao Conselho que se atacasse a cidade, o que recolheu facilmente a anuência dos seus capitães. Goa foi ocupada uma primeira vez entre Fevereiro e Maio de 1510, mas a hoste lusa teve de retirar face ao poderoso contra-ataque das forças do sultão de Bijapur. No entanto, Albuquerque não desistiu e a 25 de Novembro de 1510 reentrou na cidade, que permaneceu nas mãos dos Portugueses durante 451 anos, até Dezembro de 1961. Os goeses foram, assim, a primeira população asiática a ficar sob a alçada da coroa portuguesa.
A incorporação desta cidade no senhorio d’el-rei de Portugal introduziu um novo paradigma de presença portuguesa pelo mundo; 95 anos depois de Ceuta, Afonso de Albuquerque abria novos horizontes geo-estratégicos e novas práticas de expansão ultramarina que consagravam as próprias mudanças que os Portugueses tinham provocado, mas que a coroa ainda não tinha incorporado na sua política imperial. Com efeito, a ocupação de Goa não se articulava com os planos mediterrânicos de D. Manuel I, e pode ser vista como o prenúncio da nova política que foi implementada por D. João III desde que subiu ao trono, em 1521. O facto de a corte portuguesa ter discutido durante quase vinte anos se se mantinha a posse de Goa, é bem exemplificativo da novidade que representou a sua conquista.
O Terribil entendeu que a concretização do sonho manuelino seria mais exequível se os Portugueses criassem bases sólidas na Ásia – que fizessem do Estado da Índia uma potência asiática, tanto do ponto vista económico como do humano.
Embora fosse partidário dos sonhos cruzadísticos do rei, Afonso de Albuquerque conhecia bem o mundo asiático e compreendeu que o império não se podia resumir ao sonho de resgatar Jerusalém para a cristandade e de fazer fluir mercadorias exóticas para Lisboa. O Terribil entendeu que a concretização do sonho manuelino seria mais exequível se os Portugueses criassem bases sólidas na Ásia – que fizessem do Estado da Índia uma potência asiática, tanto do ponto vista económico como do humano. Assim, a escolha de Goa como alvo resultou da sua importância nos negócios inter-asiáticos e a conquista da cidade foi logo seguida pela aposta no desenvolvimento de uma sociedade luso-asiática, de matriz cristã, mas de sangue mestiço.
Goa era uma cidade estrategicamente importante no contexto indiano, pois estava na fronteira entre a Índia controlada pelos muçulmanos e o grande império hindu de Vijayanagar. Mudava frequentemente de mãos, e Albuquerque pôde contar com o apoio tácito do soberano hindu, pois este viu nos portugueses um aliado natural contra os islamitas. Além disso, Goa era um dos principais centros de venda de cavalos árabes e persas na Índia. A península do Decão estava em guerra quase permanente e a cavalaria era uma arma importante; no entanto, os cavalos não se reproduziam aí, pelo que os potentados indianos compravam estes animais incessantemente, e pagavam-nos em moedas de ouro. Os equídeos eram originários da Arábia e da Pérsia e eram encaminhados para a Índia a partir de Ormuz, porto que estava na mira da própria coroa por ser a porta de acesso ao Golfo Pérsico e uma outra via de circulação das especiarias em direcção ao Mediterrâneo Oriental.
A posse de Goa foi consolidada por Afonso de Albuquerque em 1515 quando submeteu Ormuz; a partir de então, o Estado da Índia controlava totalmente o comércio dos cavalos – foi o primeiro grande negócio asiático que os Portugueses controlaram e que não se relacionava nem com o trato das especiarias nem com o bloqueio ao Próximo Oriente. Pelo contrário, este trato permitia o fluxo da pimenta para o mundo islâmico, como moeda de troca pelos cavalos. Ou seja, ao penetrar nos negócios inter-asiáticos, dotando a Índia Portuguesa de uma auto-suficiência, contrariava-se a política cruzadística do rei.
A par da “asiatização” da economia do Estado da Índia, a conquista de Goa representa igualmente a criação de um novo modelo de sociedade com a promoção dos casamentos mistos. Há que dizer que, por esta altura, já haviam despontado sociedades mestiças nas ilhas de São Tomé e de Cabo Verde, mas nesse caso as uniões entre brancos e negras tinham ocorrido naturalmente e predominantemente sob a forma de concubinato. Algo de semelhante ocorria em plena escala nas fortalezas portuguesas do Estado da Índia, fosse em Sofala ou Quíloa, em África, fosse em Cananor, Cochim ou Coulão, na Índia. Tal como os muçulmanos faziam há séculos, os membros das guarnições lusas juntaram-se a mulheres de castas muito baixas, mas preferiram quase sempre a mancebia ao casamento.
Após a tomada de Goa, o Terribil promoveu o casamento dos seus homens com mulheres que tinha capturado, dando o primeiro passo para a formação de uma sociedade mestiça. Por meados do século XVI, os netos destas primeiras uniões eram tão portugueses quanto o seu avô, mas também eram indianos pela avó e pelos pais
Em Goa foi diferente, pois logo na primeira conquista, o governador capturou uma série de mulheres muçulmanas e guardou-as. Após a tomada definitiva da cidade, promoveu o casamento dos seus homens com essas mulheres, dando assim o primeiro passo para a formação de uma sociedade mestiça. Por meados do século XVI, os netos destas primeiras uniões eram tão portugueses quanto o seu avô, mas também eram indianos pela avó e pelos pais, ele luso-asiático, ela também mestiça ou simplesmente asiática. País de pequena dimensão demográfica, Portugal nunca exportou as suas mulheres, salvo quando famílias inteiras seguiram em massa para o Brasil do ouro, no século XVIII.
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