Folar da Páscoa: história e receita
A Páscoa é uma data preciosa para os cristãos do mundo, e dos portugueses em particular. A ela se associa a ressurreição de Jesus Cristo. Contudo, a ela também associamos o ovo, o coelho, ou a mulher. Que de bíblico nada têm. E é pegando nestes atributos que encontramos a origem do Folar da Páscoa, coberta por uma lenda que o cristianismo veio baralhar.

Um Folar de Ovos que é servido na Páscoa encontra origem na simbologia do ovo como alegoria para a ressurreição da natureza
A Lenda do Folar da Páscoa
Havia num sítio – não se sabe qual, apenas que em Portugal – uma bela e pobre jovem chamada Marianinha.
Marianinha, como qualquer mulher, pretendia encontrar amor cedo, para cedo se casar. Mas ele teimava em não aparecer e, todos os dias, Marianinha, enquanto fiava, orava a Santa Catarina para que ela lhe empurrasse um homem bonito, trabalhados e de posses para a sua vida.

Passou algum tempo até que Santa Catarina anuiu ao pedido. E a resposta veio em excesso: não um homem, mas sim dois, apaixonaram-se pela beleza da rapariga.
Um deles era Amaro, tão pobre quanto ela, mas formoso e forte de braços e de rosto trigueiro pelo honrado trabalho no campo. O outro era um fidalgo de terras próximas, conhecido por todos dada a sua posição, rico e culto, de maneiras poéticas e sonhos românticos.

Marianinha ficou sem saber o que fazer. Aquilo que tinha pedido realizou-se, mas em dois homens separados. De um lado, Amaro dava-lhe a certeza de ter um rapaz de trabalho, digno e protector. De outro lado, um nobre que lhe garantiria uma vida sem problemas de bolsa, e com música nas palavras.
Amaro, o jovem forte e moreno, resolveu ir ter com ela e perguntou-lhe se a escolha tinha sido feita.
– Não escolhi ninguém ainda – respondeu Marianinha -, e temo que tenha de pedir ajuda divina para o fazer, porque é de ambos que gosto.

Amaro devolveu:
– Pois ninguém pode amar duas pessoas, e terás de escolher um de nós até ao Dia de Ramos, a menos que não ames qualquer um e aí não terás de escolher ninguém.
Amaro partiu, e no mesmo dia apareceu o fidalgo com mensagem parecida, floreada com os seus bons modos. O fidalgo pediu celeridade à sua amada, e disse que, se Amaro deu o Dia de Ramos como data final para a decisão, assim seria, já que ele não iria esperar mais do que o seu oponente.

Marianinha estava tão petrificada com a situação que teve de recorrer novamente a Santa Catarina. Entretanto, nos quinze dias que iam desde o encontro com os seus dois pretendentes até ao Dia de Ramos, o povo soube da novela, comentando entre si, como se fossem espectadores de um concurso, qual seria a decisão de Mariana. Havia dias em que Amaro e o fidalgo se encontravam e tinham de ser outros homens a separá-los, tal já era a inimizade entre ambos.
No Dia de Ramos, o mesmo aconteceu, e indo os dois para casa da Marianinha para saber quem seria o escolhido, um atirou para o outro:
– Mariana já se decidiu e foi o meu nome que falou!
– Pois eu também já estive com ela e ela própria me desmentiu…

Começou a zaragata. Tamanha era ela que uma aldeã foi a correr ter com Mariana e lhe disse que os dois estavam prestes a matar-se um ao outro caso ela não se decidisse. Marianinha, saiu a correr de casa e deu com eles em plena pancadaria. Vendo que ninguém os conseguia separar, gritou, quase por impulso:
– Amaro, Amaro… Parem, que eu fico com Amaro!
Amaro largou o combate e viu Marianinha a atirar-se para os seus braços. O fidalgo olhou para o casal e foi-se embora sem nada dizer.

A Páscoa chegou e Amaro e Mariana tinham anunciado casamento. Contudo, a povoação vivia em constante dúvida quanto às represálias do fidalgo, que andava calado. Muita gente acreditava que o fidalgo iria matar Amaro antes deste desposar a sua amada._
Mariana, sabendo disto, fez um terceiro pedido a Santa Catarina. Que ela intercedesse junto do nobre e que lhe pedisse perdão em nome de Mariana, que tudo o que ela fez foi por amor e não por maldade. Colheu flores e ofereceu-as aos céus em troca deste favor.

No dia seguinte, pela manhã, ela e Amaro repararam que em cima da sua mesa se encontrava um lindo bolo, onde se encaixavam dois ovos inteiros, e com flores semelhantes às que Mariana tinha oferecido em seu redor. A noiva não teve dúvidas:
– Amaro, este presente foi-nos dado pelo fidalgo. É um pedido de desculpas…
Amaro, olhando para todo o requinte do bolo, concordou. Realmente, tal doce não poderia vir de alguém do povo, tão trabalhado e apaparicado estava. E acharam que seria justa uma deslocação ao solar do nobre, para lhe agradecerem o gesto.

A caminho de lá, deram precisamente com o fidalgo, de sorriso estampado na cara.
– Queria dizer-vos um muito obrigado pelo vosso presente, em meu nome e em nome do meu futuro marido – disse Marianinha.
O fidalgo retornou:
– Que presente? Eu é que vos agradeço. Ou não foram vocês que me trouxeram um maravilhoso doce, com ovos inteiros por dentro, e adornado com flores?
E Marianinha olhou para cima e sorriu. Ela sabia ter sido a sua santa a resolver o assunto.
Simbolismo do ovo no folar

A lenda descrita acima – quanto a mim uma das mais atípicas que conheço no arquivo português -, tem o lado cristão da Páscoa bem cunhado. Um milagre feito por Santa Catarina de Alexandria, padroeira dos solteiros, a quem uma mulher (também ela solteira), pede ajuda para ter esposo.

O facto de se passar na altura da Páscoa é relevante, sobretudo tendo em conta a oferta de Marianinha (as flores) e a sua retribuição (um bolo, decorado com flores, e que carrega ovos inteiros dentro de si).
Rebuscados a um passado claramente pré cristão, as flores e o ovo (e aqui o ovo encontra-se dentro de um outro corpo, o bolo, como se fosse um feto, um início de vida) representam a época do ano em que a lenda é passada – que marca o fim definitivo do Inverno e o início claro da Primavera.
As flores como metáfora para o abrir da terra (abrir como aprilis, que dá o nome ao mês de Abril, mês mais associado à Páscoa), o ovo como metáfora para a renovação da vida, pois é ele o resultado da reprodução sexual.

Só cá falta o animal mais associado à Páscoa, o coelho, que não por coincidência é famoso pela sua hiperactividade sexual, remetendo mais uma vez tudo isto para o início de um novo ciclo natural onde o chão volta a brotar._
Germânicos e nórdicos tinham na Deusa Eostre (de onde deriva o inglês Easter, isto é, Páscoa) a sua forma de transpôr a chegada da Primavera para uma Deusa à sua imagem (como Flora estava para o panteão romano, por exemplo, ou Cibele para o grego).
Com efeito, Eostre é comummente representada fazendo-se acompanhar de flores, coelhos, ovos ou cegonhas (também elas vistas como sinónimo de nascimento).

Há assim um sincronismo a ter em conta, a da Ressurreição da Natureza, mais tarde transformada na Ressurreição de Cristo. E talvez aqui, nesta lenda, Santa Catarina venha substituir a influência que antigas Deidades germânicas (como Eostre) tiveram no continente europeu.
Tal como o bolo a que chamamos Folar da Páscoa é uma adaptação moderna das antigas oferendas pagãs, quando a dádiva de ovos (o fruto da vida) era tida como um desejo de boa sorte para a estação primaveril – ou seja, que ela fosse ubertosa o suficiente.
O próprio termo folar pode derivar do latim floris. Com efeito, o facto de o nome anterior que se dava a tão raro bolo ser folore aponta para aí. Um brinde da Primavera. Como uma flor.
Receita do Folar da Páscoa

Há vários tipos de folar em Portugal, muitos deles, creio que a maioria, nem sequer são doces, mas sim salgados.
Contudo, aqui falaremos do Folar da Páscoa, também conhecido por Folar de Ovos, cuja tradição manda os padrinhos e madrinhas oferecer, durante a Páscoa, um exemplar aos seus afilhados.
A fórmula é a seguinte:
Começando por liquefazer 15 gramas de fermento de padeiro em leite ligeiramente aquecido, juntam-se farinha (100 gramas) e um pouco de açúcar até criar uma massa – depois é vê-la crescer em sítio quente durante cerca de meia hora.

À parte, pegamos em dois ovos e adicionamo-los a 400 gramas de farinha, duas colheres de açúcar, e um quarto de litro de leite. A massa densa que daqui resulta deve depois ser barrada com 100 gramas de margarina, erva-doce, canela e sal. Depois de tudo misturado, pegamos na primeira massa, já depois de levedada, e juntamo-la a esta segunda, num mesmo alguidar.
Vamos mexendo e remexendo na combinação até que esta se despegue das paredes do alguidar. Quando assim for, cobrimos o recipiente com um pano.

Agora é ir para a sala de espera e fazer o que o verbo manda: esperar. A massa irá levedar por algumas horas – em sítios aquecidos, duas horas bastam, em sítios menos quentes, poderá demorar cinco horas (atenção que nunca deveremos deixar a massa fermentar dentro do forno).
Tendo já o bolo à nossa frente, esborrachamo-lo suavemente de cima para baixo porque lá terão de caber os ovos cozidos, símbolo maior do Folar da Páscoa – o número de ovos variará consoante o gosto. Atam-se os ovos com tiras puxadas do próprio bolo. Pintamos a parte de fora com gema de ovo e leva-se ao forno.
Fonte: Portugal num mapa
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