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Bartholomew Ryan: “Um poema de Pessoa é sobre o ‘eu’. É sobre as questões fundamentais, sobre existir”

Bartholomew Ryan estava a preparar a tese de doutoramento sobre Kierkegaard quando lhe foi parar às mãos um exemplar do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Como é que isso aconteceu, já não sabe ao certo, mas de uma coisa tem a certeza: de que “foi amor à primeira vista”. Desde então, já passaram mais de 14 anos, muitas voltas e uma passagem por Lisboa que o fez trocar tudo pelo sol da capital portuguesa. Outro amor à primeira vista.
A aventura que levou Ryan a Lisboa começou num local improvável: na Aarhus Universitet, em Aarhus, a segunda maior cidade da Dinamarca. Foi para aí que se mudou em 2003, depois de ter terminado o mestrado em Filosofia, na University College, em Dublin, para tirar o doutoramento sobre o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, colecionador de pseudónimos. “Tinha mais de 15. Nenhum filósofo teve tantos pseudónimos”, explicou Bartholomew Ryan. “Também tinham personalidades e biografias, um bocadinho como os heterónimos de Fernando Pessoa.”
“Em 2005 ou 2006, encontrei o ‘Livro do Desassossego’. Não me lembro como, mas acho que o descobri através do Modernismo, de Joyce e Kierkegaard. Foi amor à primeira vista.” Bartholomew Ryan
Ryan estava em Aarhus há cerca de dois anos quando encontrou o Livro do Desassossego. “Não me lembro como, mas acho que o descobri através do Modernismo, de Joyce e Kierkegaard”, contou. “Foi amor à primeira vista.” Os outros heterónimos só vieram depois, quando em 2007, um ano depois de ter acabado o doutoramento, visitou pela primeira vez Portugal a convite de uns amigos. “Conhecia muito bem Espanha. Já tinha visitado Madrid, Barcelona, San Sebastián, Granada… Mas nunca tinha visitado Portugal. Tinha interesse por causa da ligação com Moçambique, Angola e o Brasil.”
Foi, aliás, através do Brasil que o irlandês teve o primeiro contacto com a língua portuguesa, com a música de Caetano e de Chico Buarque. “Adorei o som da língua”, recordou. Por isso, quando embarcou rumo a Portugal, sabia que ia gostar — do país e desta “cultura atlântica” que não lhe é de todo estranha. “Sou irlandês, gosto muito do mar e da cultura do mar.”
Chegou a Portugal em setembro de 2007. Os amigos levaram-no ao Algarve, a Sintra, mas foi com a Lisboa de Fernando Pessoa que se encantou. Foi também durante essa estadia que uma amiga lhe deu de presente o poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos. “Foi a primeira vez que li Álvaro de Campos. E pensei: ‘Meu Deus, prefiro Álvaro de Campos!’ Depois voltei para Berlim para fazer um trabalho sobre a ‘Tabacaria’ e comecei a ler muito Campos, Caeiro. O universo de Pessoa.”

Deu aulas na Bard College, em Berlim, durante quatro anos, sempre com a certeza de que um dia haveria de regressar a Lisboa, mas definitivamente. Voltou em 2008 e depois em 2009, no âmbito de uma digressão musical em Espanha e em Portugal que o levou ao palco do Clube Ferroviário, em Santa Apolónia. É que, a par da literatura e da filosofia, a música é uma das grandes paixões do investigador. Atualmente faz parte dos The Loafing Heroes, uma banda internacional com músicos dos quatro cantos do mundo. “Vi Portugal de diferentes maneiras — através da música, da cultura. Uma coisa de que gostei muito em Portugal é que era um segredo. Agora já não, nos últimos três, quatro anos, passou a estar mais no mapa.”
Estabeleceu-se em Lisboa em setembro de 2011, quando lançou o seu projeto sobre Pessoa e Filosofia. Hoje é investigador de pós-doutoramento no Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, onde se dedica ao estudo do “Teatro do Eu” em Kierkegaard e Pessoa. Sobre esse assunto, co-editou em 2016 o volume Nietzsche e Pessoa, que reúne um conjunto de ensaios de vários autores que procura fazer uma aproximação entre a filosofia de Friedrich Nietzsche e de Fernando Pessoa. “Foi um trabalho de amor — de amor pela cidade e pelo poeta também“, lembrou. Mas porquê Pessoa e a Filosofia?
“Adoro este tipo de escritor, entre a Literatura e a Filosofia. Esta é uma coisa do modernismo — esta tensão entre as fronteiras da filosofia e da literatura. Às vezes, conseguimos aprender mais filosofia através da poesia, e vice-versa. Pessoa é perfeito para isso.” Bartholomew Ryan
“Sempre tive interesse em ligar a Filosofia e a Literatura. O meu doutoramento foi sobre Kierkegaard, e desde que cheguei a Lisboa não parei de escrever sobre o ‘Teatro do Eu’, a pluralidade do sujeito na Filosofia. Kierkegaard era um filósofo, mas escreveu como um poeta. Nunca escreveu um poema na vida, mas era um género de artista — aquele que é especialmente dotado na percepção e expressão do belo ou lírico. Fernando Pessoa é o inverso de Kierkegaard — é um poeta mas também é muito filosófico”, explicou Ryan. “É muito interessante pensar em Kierkegaard através de Pessoa, e Pessoa através de Kierkegaard. E depois, quando cheguei a Berlim, comecei a trabalhar sobre Nietzsche, outro tipo de filósofo que escreve como um poeta e que também tinha este interesse pela pluralidade do sujeito.”
“Kierkegaard e Nietzsche gostavam de mostrar diferentes perspetivas de filosofia. Para os lermos temos de encontrar a nossa vida neles e algumas vezes é importante ler as diferentes perspetivas. Acho que Kierkegaard e Nietzsche eram palhaços muito sérios, o que significa que escreviam nas fronteiras da comédia e tragédia”, afirmou. O gosto do filósofo dinamarquês pelo tema da morte é um exemplo claro disso: “Escreveu muito sobre morte, porque perante a morte tornamo-nos mais acordados para a nossa vida. Ele sabia que temos de nos rir, dançar perante a morte”, explicou Ryan. “A morte é muito importante para viver. Tal como Fernando Pessoa, Kierkegaard queria pensar sobre as coisas mais duras — sobre a ansiedade, a angústia, o desespero, a morte — para viver com mais paixão. Com mais vida.”
É por esta tensão entre uma e outra área que Bartholomew Ryan não podia deixar de gostar do poeta português, que descobriu quase por acaso. Na Irlanda, se se perguntar por Fernando Pessoa, o mais provável é receber-se uma interrogação como resposta. No país de um dos maiores escritores modernistas europeus, ninguém sabe quem é o maior dos modernistas portugueses. “É uma grande tragédia”, lamentou-se Ryan.
“Um poema de Caeiro, Campos ou Pessoa é sobre o ‘eu’. É sobre as questões fundamentais, sobre existir, e isso é muito importante.” Bartholomew Ryan
O que é de estranhar, uma vez que Pessoa nunca foi tão popular como agora. Há 30 anos, a realidade era bem diferente. “Quase ninguém conhecia Pessoa fora de Portugal”, uma situação que foi alterada, em grande parte, graças ao trabalho de tradução e divulgação de investigadores como Richard Zenith. “A primeira edição do Livro do Desassossego é de 1982. Em Portugal também aconteceu tudo muito devagar. Sempre houve textos e poemas a circular, mas só nos últimos 20 anos é que editoras como a Assírio & Alvim e a Tinta-da-China começaram a publicar muitos mais livros. O segredo de Pessoa já é menos um segredo.”
Mas, acima de tudo, Fernando Pessoa é conhecido por ser um autor que, ainda hoje, é “muito contemporâneo”. E isso nunca vai mudar. “Um poema de Caeiro, Campos ou Pessoa é sobre o ‘eu’. É sobre as questões fundamentais, sobre existir, e isso é muito importante. Não está fora do prazo, são do mundo, do agora. São perguntas sobre como existir, e são muito bonitas estas palavras.”
(cont.)