Erros de português e a vontade de os encontrar nos outros… Fazer a barba e Copo de água serão erros de português?

Antes de mais, gostava de agradecer aos meus leitores: recebo por aqui excelentes comentários, que às vezes valem mais do que o próprio artigo. Basta pensar nos comentários à aventura das línguas da Eurovisão…
Os comentários críticos são também, quase sempre, muito agradáveis e simpáticos. E foi sem acrimónia que um leitor, há pouco, tentou convencer-me de que «fazer a barba» é mesmo erro de português, apesar do que por aqui escrevi já vai para dois anos.
Ainda dialoguei um pouco com o leitor e, por fim, aceitámos que as nossas visões da língua são irremediavelmente diferentes.
Para o tal leitor, um verbo só pode ter o significado mais óbvio ou aquele que parece mais lógico. Se ao cortarmos a barba não estamos a construir nada, então não podemos usar tal expressão.
Para mim, pelo contrário, os significados das palavras são um pouco mais malandros e dão umas piruetas engraçadas. Não há nada que possamos fazer quanto a isso — e ainda bem.

A minha questão, agora, é esta: qual é o percurso mental que leva algumas pessoas a considerar erro algumas expressões e não outras, onde também podíamos martelar uma qualquer falha lógica?
Julgo que será algo assim:
1
Imbuído da ideia falsa de que uma palavra só pode ter um significado ou de que os sentidos menos literais de cada expressão estão sempre errados, um falante desprevenido descobre um erro na língua portuguesa.
Por exemplo, «fazer a barba». Ah, pois! Nós não fazemos a barba! É erro! É erro! Ah, malandros dos portugueses, que andam há tanto tempo a usar uma expressão tão errada…
2
O falante fica feliz: apanhou todos os outros em falso. Sabe um pouco mais do que o vizinho. Como um dos problemas cognitivos a que todos estamos sujeitos é a crença de que somos mais espertos do que a maioria das outras pessoas, é fácil acreditar que, se todos dizem «fazer a barba», é porque todos estão errados (eu é que não).
(Diga-se que este não parece ser o caso do leitor com quem andei a dialogar, pois ele confessou-me também usar a tal expressão.)
3
Se sairmos em defesa da dita expressão e dissermos algo como «as expressões da língua não estão erradas só porque nos apetece» — ou «devemos ter em conta a realidade da língua que sai da boca dos falantes» — ou «as palavras têm significados claros e legítimos que, no entanto, nem os dicionários conseguem apanhar» — ou «a língua portuguesa deve ser estudada com respeito antes de nos pormos a corrigi-la à tonta» — a pessoa que andava por aí convencida de ter apanhado o resto do mundo em falta fica um pouco desiludida.
Se aceitar os argumentos, esfuma-se naquele instante o poderoso perfume a superioridade. Ou então, o que é mais provável, não cede e defende a todo o custo a sua ideia muito particular de erro. Um pouco como aquele condutor que está em contramão convencido que os outros carros é que vão todos mal…

Usar a expressão «fazer a barba» não atrapalha nenhum falante e, na verdade, só irrita quem foi infectado pelo vírus das interpretações literais ou das piadas de barbearia.

Um copo com água? Não pode ser um copo de água?
“Há muita gente com demasiada vontade de encontrar erros de português na boca dos outros.”
Ora, anos depois, num lindo fim de tarde — ou melhor, hoje mesmo, ali num café perto do Oceanário onde fui com o meu filho e a minha sobrinha que anda por cá a passear com os pais, num Natal tardio, estava eu a beber um café quando um senhor muito bem vestido e seguro de si se chega ao balcão e diz, bem alto, «quero um copo com água!» Sim, o «com» foi dito com negrito e tudo.
Longe de mim criticar tal construção. Está correcta, tal como dizer «vou tomar uma colher com xarope» ou «passa-me a chávena com chá».
Mas lá que tresanda a preciosismo, não haja dúvida. O tom do senhor bem parecia dizer: «ó para mim a usar a construção correcta, ao contrário de tantos outros».
Enfim, se calhar estou a ser muito injusto. Vai na volta, o senhor sempre disse «copo com água» (e gosta de sublinhar as preposições com a voz).
Seja como for, parece que algumas pessoas concluíram que, se o copo não é feito de água, só podemos usar a preposição «com»: queremos um copo com água, não um copo feito de água.
As regras da língua, que temos cá dentro e não são fáceis de descrever, mesmo quando as usamos sem dificuldade no dia-a-dia, parecem ser mais complexas e até um pouco mais flexíveis (ah, o horror) do que essas lógicas da batata que inventamos a correr, só para termos o prazer de tomar os outros por parvos.
Afinal, quando falamos de algum tipo de material que está dentro de um qualquer recipiente, diz-nos a língua que temos cá dentro que podemos usar a preposição «de»: «um balde de areia», «um camião de tijolos», «um copo de água», «uma colher de xarope», etc.
Porquê?
Porque é assim que o português-padrão funciona. Sim, exacto. Se, no entanto, formos mais curiosos, podemos até tentar descortinar a lógica mais profunda dessa construção, por mais fugidia que nos pareça: estamos a dar mais atenção ao conteúdo e não tanto ao recipiente — falamos da areia, dos tijolos, da água, do xarope. O que vem antes (o balde, o camião, o copo, a colher) serve de medida daquilo que nos interessa (embora também sirva de recipiente, é verdade). É quase como dizer: «quero um metro de tecido» — da mesma forma, «quero um copo de água».
O curioso é que ninguém ouve «quero um copo de água» e pensa num improvável copo feito de água. Todos percebemos perfeitamente a expressão, ela é usada em todos os registos e faz parte do português-padrão — e mesmo assim leva pancada de algumas pessoas, que enfiam uma qualquer lógica aleatória pela garganta da língua abaixo.
Quando nos pomos a tentar encontrar à força parvoíces no português, é isto que acontece.
Tudo isto para dizer que, não, estas correcções forçadas e erradas estão muito longe de ser apanágio desta ou daquela profissão. Os empregados de balcão não são mais ou menos propensos a estas manias. É uma profissão como as outras, pois então: deste e daquele lado do balcão, há muita gente com demasiada vontade de encontrar erros de português na boca dos outros.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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1. Fazer a barba é correcto. Fazer aqui não significa construir, mas cortar.
2. Um copo de água é um copo (cheio) de água. Um copo com (um pouco de) água. Tal como se diz na mercearia:
– Dê-me uma garrafa de óleo, um pacote de arroz, etc.
Não se diz uma garrafa com óleo, um pacote com arroz.
Veja-se ainda parte de um diálogo:
– Está aqui um pacote com arroz. (Implícito: um pacote com arroz)
Sou brasileiro e gosto muito de acompanhar seu canal. Gostaria de fazer uma pergunta: “Vocês estão seguindo o scordo ortográfico feito anos atrás juntamente com países que falam o Português? Pergunto porque vejo, por exemplo, exacto. Aqui dizemos exato. Aqui nós escrevemos ideia, Coreia, panaceia, por exemplo, sem o acento que antes existia.
Parabéns pelo texto, professor. A metalinguistica é instrumento precioso de valorização cultural. Viva a Lingua Portuguesa!