«Estivéramos lá oito professores a trabalhar», afirmou o amigo a conversar sobre uma escola. Língua Portuguesa: «Estivéramos» é erro de português?

Há umas semanas, tive uma espécie de duelo virtual com um senhor que dizia ter encontrado a prova irrefutável da decadência da língua: um amigo dele tivera o desplante de usar a estranhíssima expressão «estivéramos lá oito professores».

O contexto é este: estavam eles (o tal senhor e o amigo) a conversar sobre uma escola que tinha fechado. Ora, a escola fechou e, antes disso, afirmou o amigo, «estivéramos lá oito professores a trabalhar».
É isto um erro de português?
Não me parece. O pretérito mais-que-perfeito é adequado naquela situação, embora nos soe já um pouco estranho por estarmos pouco habituados à forma verbal.
Ao vivo e a cores é já muito raro usarmos tal relíquia da nossa gramática. E é pena. Mas pior ainda é encontrar sinais de decadência no uso dum tempo verbal tão bem feito e simpático.

Num comentário por baixo do tal post de Facebook, disse isto mesmo: talvez aquela palavra não fosse um erro. O senhor não gostou. Não só me descascou forte e feio, como ainda insultou quem teve o desplante de dizer que talvez eu até tivesse alguma razão.
Por fim — e isto é curioso — ainda nos deu a todos a lista de todos os jornais em que já tinha escrito, como se isso tivesse alguma coisa que ver com a correcção ou incorrecção daquela palavrinha.
Continuou a enumerar as línguas em que sabia escrever e terminou dizendo, para quem o quis ouvir, que nunca ninguém lhe dissera que escrevia mal! Estivéssemos mas é calados que ele é que sabia. A coisa não ficou por aí. Recebi ainda uma mensagem privada do mesmo senhor a dizer que eu não tinha nada de o pôr em causa e não sei que mais.
Eu respirei fundo, já arrependido por ter comentado um texto de tal personagem. Disse-lhe então, com calma, que apenas afirmara, sem mal algum, que «estivéramos» existe e que me parecia correcto naquela situação.
Não concordei com a opinião dele, segundo a qual, o pretérito mais-que-perfeito não podia ser usado naquele contexto. Podia dar-se o caso de eu estar errado e a forma verbal não ser adequada no diálogo em questão.
Mas, seja como for, o meu comentário certamente não valia a tempestade com que o senhor me azucrinara o juízo (perdão antecipado pelo mais-que-perfeito que acabei de usar).
Enfim, nada mais há a concluir do estranho episódio do que isto: a arrogância existe no mundo e, no que toca à língua, parece que há gente com poucos travões nessa arrogância.
Mas trago aqui este episódio para referir outra coisa. Na discussão que entretanto começou por ali, uma das «regras» que me apresentaram para provar que eu estava errado era esta: o pretérito mais-que-perfeito só deve ser usado numa frase onde outro verbo esteja no pretérito perfeito.

Este é um exemplo de «regra à pressão»: uma regra inventada naquele momento para justificar uma ideia sobre a língua — e que serve de substituto à observação atenta dessa mesma língua tal como existe na boca dos falantes.
«O pretérito mais-que-perfeito exige sempre o pretérito perfeito na mesma frase.» Soa bem, parece uma regra, mas não é assim que a língua funciona.
Nós podemos usar o pretérito mais-que-perfeito mesmo quando não temos o pretérito perfeito na mesmíssima frase. Basta estarmos a pensar num evento passado que ocorreu antes doutro evento passado que esteja na nossa ideia naquele momento.

«Trouxeste o livro lá de casa? Não, a minha mãe já o dera ao meu primo…» A segunda frase não tem pretérito perfeito nenhum e o pretérito mais-que-perfeito fica ali muito bem. Claro que no dia-a-dia substituímos pela forma composta — «a minha mãe já o tinha dado ao meu primo» — mas a lógica é a mesma.
As regras do português encontram-se quando observamos a língua com atenção, o que implica não saltar logo para a conclusão que os falantes estão errados quando alguma coisa não nos soa bem.
As regras de português não se encontram pensando em lógicas repentinas, só porque nos apetece e só porque dá jeito para provar que os outros são burros e nós é que falamos bem. O respeito pelos falantes é essencial quando nos propomos dizer alguma coisa sobre o assunto.

Sim, os falantes enganam-se. Sim, os falantes usam vários registos e formas que não são adequadas a todas as situações. (E, sim, os falantes por vezes não sabem escrever, mas isso é outra questão.) Mas, apesar dos erros, é na boca dos falantes que encontramos as regras da língua. Não é nas nossas invenções apressadas.
Tudo para dizer que inventar regras à pressão para justificar os nossos preconceitos é precisamente o que não devemos fazer nisto da língua.
Tal como também não devemos chegar a conclusões definitivas sobre o estado da língua com base numa qualquer conversa — o tempo verbal até podia estar errado sem que daí pudéssemos dizer fosse o que fosse sobre o estado da língua em comparação com outras épocas.
Ou será que houve alguma década dessas que já lá vão em que ninguém se enganava num tempo verbal enquanto conversava com um amigo?
Mas — admito: o português já não é como era. Usamos muito menos o pretérito mais-que-perfeito do que antigamente. Mas quando o usamos, por amor da santa, deixem-no lá sossegado.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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Muito legal esse texto! Adorei!!
Mas uma coisa que me chama atenção é o uso da ênclise em alguns pontos do texto. A ênclise também é facultativa? Pergunta de quem se formará em letras neste ano e sabe cada vez mais que nada sabe! rss
Abraços!
Sim, gostei, como de costume, da explicação do professor .
Mas, por favor, o que é uma “enclise”?
Obrigada