A boa loucura linguística da Suíça

Fui à Suíça uma vez só, de passagem, num autocarro cheio de algarvios. Agora não tenho tempo para explicar como me meti em tais sarilhos. Digo apenas que foi há 20 anos e ainda hoje me lembro dessa viagem com saudade.
Chegámos a Genebra depois de jantar. Passeámos pela cidade durante toda a noite. Fomos a uma discoteca. Saímos muito tarde. O sol nasceu. Havia um repuxo gigante. Aprendi palavras algarvias. Depois, adormeci no autocarro durante o resto da manhã e abri os olhos vagamente, depois de bater com a cabeça no banco numa curva mais apertada — foi então que vi uma gloriosa paisagem alpina onde havia vacas a pastar. Ou então estou a misturar tudo com um anúncio da Milka.
Pois bem, passei a correr por essa Suíça rodeada de França. Por baixo dos meus pés (não sabia na altura) estava o CERN e o seu acelerador de partículas — e, à minha volta, estava a língua francesa na boca dos suíços.
Ora, a Suíça é um país linguisticamente curioso: tem várias línguas — e não tem grandes problemas com isso, pelo que me é dado a saber.
O país — que é uma confederação de cantões com uma autonomia que fica a dever pouco à independência — tem quatro línguas nacionais: o alemão, o francês, o italiano e o romanche.
As quatro línguas convivem no mesmo Estado. O Governo central usa as quatro (embora o romanche não seja tão comum a esse nível). Não há obrigação de todos os cidadãos conhecerem uma das línguas, apesar de o alemão ser claramente maioritário. Cada cantão tem a sua política linguística e um deles chega a ser trilingue.
Tantas línguas prejudicam a Suíça? Não me parece. O país funciona mal? Não consta. Funcionaria melhor se usasse uma só língua? Ninguém sabe, mas sabemos isto: a Suíça, se tem algum problema, é funcionar bem demais. Atrevo-me a fazer esta previsão: quisesse a Suíça começar a dar uma dignidade oficial muito superior a uma destas línguas e a paz começava logo a estalar.
A outra língua da Suíça
Por outro lado, no que toca ao alemão, há uma forma particular suíça — o suíço-alemão. Este nome abrange vários falares germânicos que podiam, facilmente, ser usados para criar uma nova língua suíça. O Luxemburgo fez isso mesmo há poucos anos.
Os suíços de língua alemã vivem numa situação que os linguistas chamam diglóssica: no fundo, sabem duas línguas, pois os dois sistemas são suficientemente autónomos para serem aprendidos como línguas separadas — e usam as duas línguas em situações sociais diferentes, como se fossem registos. Ou seja, tal como nós usamos um português formal numa aula e um português informal no café, os suíços de língua alemã usam uma língua durante a aula e outra no café.
Isto pode levar a que um professor universitário responda em alemão durante a aula e em suíço-alemão no corredor da faculdade — e nem precisa de mudar de aluno.
Imagino eu, que não sei alemão, que esta situação implica toda uma série de gradações, usos misturados e algumas confusões. Também me parece pouco crível que tudo se faça sem tensões e alguns preconceitos — mas, enfim, estamos a falar dos suíços. Se calhar, são mesmo os únicos que conseguem navegar estas águas sem desatar às traulitadas.
Mais a sério: naquele país, há uma história de compromissos que desembocou na actual situação complexa, mas pacífica. As situações complicadas resolvem-se assim.
O português que não gosta da maneira como os suíços falam
A nós, país onde se fala uma língua que é oficial em todo o território, tudo isto pode fazer confusão. Ainda há uns dias encontrei um texto rabugento no Facebook, em que um emigrante português na Suíça ralhava com os outros portugueses emigrados na Suíça. O pecado deles? Andavam a aprender palavras em suíço-alemão. O texto era bem irado: usava palavrões e tudo. Dizia ele que português que é português, na Suíça, devia aprender alemão e nunca um dialecto de m*rda.
Pareceu-me que aquele homem também estava um pouco irritado com os próprios suíços. Por que carga de água não hão-de falar sempre em alemão a sério? Que mania!
Bem, já sei: no Facebook, há indignações para todos os gostos. Mas esta atitude mostra bem uma certa maneira de olhar para as línguas que faz estrago em muitos países. Essa atitude compõe-se de uma crença absoluta no valor intrínseco e óbvio da língua-padrão e um desprezo em relação a todos os falares que não sejam a língua oficial. Não é preciso pensar muito para vermos o que acontece quando muitas pessoas acreditam que o valor da sua língua é bem superior à língua de outros cidadãos do seu próprio país — quer por causa do número de falantes quer por causa das fantasmagóricas qualidades dessa língua.
O problema da linguagem humana não é a sua imensa variedade — é, isso sim, a nossa falta de paciência para aceitar as línguas dos outros.
E que tal uma Espanha mais parecida com a Suíça?
Os suíços dão valor oficial a uma língua (o romanche) falada por pouco mais do que a população duma freguesia lisboeta. As crianças dessa zona, na escola, aprendem a escrever nessa língua falada por muito poucos. Depois, aprendem mais línguas do seu país e ninguém se importa com isso…
Mas nem é preciso chegarmos ao romanche: temos o francês, o italiano e o alemão. É verdade que são língua protegidas pelos países vizinhos. Mas, no total, são quatro línguas e a Suíça teve de aprender a viver com esta variedade toda. A solução foi dar uma dignidade oficial a todas elas.
Tem custos? Sim, claro. No Parlamento federal, por exemplo, é preciso haver intérpretes — é um pequeno preço a pagar pela paz linguística e pelo respeito igual devido a todos os idiomas do país. Sim, acredito que esta atitude é um bom exemplo para outros países com várias línguas. E, sim, estou a pensar em Espanha.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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