Poeta de múltiplas faces, foi vários e ao mesmo tempo um só, deixando-nos uma vasta contribuição para a literatura universal: 9 Poemas inéditos de Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em junho de 1888, e na mesma cidade morreu aos 47 anos, em novembro de 1935, em consequência de uma cirrose hepática.
Os seus poemas mais conhecidos foram assinados pelos heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, além de um semi-heterónimo, Bernardo Soares, que seria o próprio Pessoa, um ajudante de guarda-livros da capital portuguesa e autor do “Livro do Desassossego”, uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século 20.
Após sua morte, foram encontrados mais de 30 mil escritos que, ainda hoje, continuam a ser editados. Delicie-se com alguns poemas inéditos de Fernando Pessoa:

Fonte
(1912)
Fresca e viva
A água viva
Só de ouvida,
Minha vida.
Sinto mais
Leves, ais
Minha dor
Quase amor.
Fonte calma
Dou-te a alma
Dá-me a tua
Fresca e nua
Já que a aurora
A ambos doura,
Minha irmã
Em manhã.
_

Sou um evadido
(1931)
Sou um evadido
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu não é ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
_
Un soir à Lima (Quebra-te, coração)
1935
Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
Eu ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
E minha mãe, criança,
No recanto da sua poltrona,
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança…
E eu, de pé, entre a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar
Onde tudo isso está!
Un Soir à Lima
Quebra-te coração!
Mas entorpeço.
Não sei se vejo, se adormeço,
Se sou quem fui,
Nem sei se lembro, nem se esqueço,
Há qualquer coisa que indistinta flui
Entre quem sou e o que eu era
E é como um rio, ou uma brisa, ou um sonhar
Qualquer coisa que não se espera,
Que se suspende de repente
E, do fundo aonde ia acabar,
Surge, cada vez mais distintamente,
Num holo de suavidade
E nostalgia,
Onde meu coração ainda está,
Um piano, uma figura, uma saudade…
Durmo encostado a essa melodia —
E oiço que minha Mãe toca,
Oiço, já com o sal das lágrimas na boca,
Un Soir de Lima.
O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega —
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo, porque flui,
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo, e adormeço,
E no torpor em que me esqueço
Estou vendo minha mãe tocar.
Essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Un Soir à Lima
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que que o vi.
Mas que? Divago e a música acabou…
Divago como sempre divaguei
Ser ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé nem firme lei
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem pra elas ter um trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha ao pé do muro.
Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un Soir à Lima…
Quebra-te coração…
_
Na estalagem a meio caminho
(1919)
Na estalagem a meio caminho
Entre o sonho e a vida
Cheguei sozinho,
Sem esperança ou carinho
Sem viagem necessária ou estrada percorrida.
Nunca ali passei
E nunca de ali saí.
Ali, em mim, como rei,
Podia reinar, bem sei;
Mas o esforço {é} uma sombra, e nem existe ali.
Não morei onde estive,
Não vivo onde ‘stou.
Sonho como quem vive
Na estalagem do declive
De mim p’ra mim, de quem quero ser p’ra quem sou.
_
P-há
(1929)
Hoje, que sinto nada a vontade, e não sei o que dizer,
Hoje, que tenho a inteligência sem saber o que qu’rer,
Quero escrever meu epitáfio:
Álvaro de Campos jaz Aqui, o resto a Antologia Grega traz…
E a que propósito vem este bocado de rimas?
Nada… Um amigo meu, chamado (suponho) Simas,
Perguntou-me na rua o que é que estavas a fazer,
E escrevo estes versos assim em vez de lho não saber dizer.
É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo.
Mas às vezes rimar é preciso.
Meu coração faz pá como um saco de papel socado
Com força, cheio de sopro, contra a parede do lado.
E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente
E eu acabo este poema indeterminadamente.
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Tinha um barco lindo que pela água ia
(1908)
Tinha um barco lindo que pela água ia
Como nuvem branda pelo brando céu
Carreguei-o d’ouro que o labor trazia
E soçobrou logo que vogar queria
E eu fiquei nas ondas sem o barco meu.
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É inútil tudo, até sabê-lo. O dia
(1931)
É inútil tudo, até sabê-lo. O dia
Conduz à noite, que de novo o cria.
Nas vésperas augustas da renúncia,
Tu à mesma renúncia renuncia.
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Justice
(1907)
There was a land, wich I suppose,
Where everyone had a crooked nose;
And the crooked nose that everyone had
In no manner did make him sad.
But in that land a man was born;
Whose nose more straight and clean was worn;
And the man of that land with a public hate
Killed the man whose nose was straight.
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Star
(1912-1913)
Mom âme s’est cassée
Je m’éparpille en moi…
Une peur
Me bascule, me secoue
Pas de coin où ma peur se cloue
À un sommeil oublieux.

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