A nossa língua é assim: com muitas surpresas e também alguns animais escondidos, que de vez em quando lá arrebitam a cabeça e dão um ar de sua graça.

A língua tem destas coisas: muitas surpresas, algumas voltas menos claras — e tem também alguns animais escondidos, que de vez em quando lá arrebitam a cabeça e dão um ar de sua graça nas nossas conversas e nos nossos escritos.
Lembrei-me destes sete exemplos, embora saiba que há muitos outros animais escondidos na nossa língua: são os autarcas armados em dinossauros, são os espertos que nem raposas, são os sujos que nem porcos — mas deixemos os insultos para outro dia. Hoje quero animais inocentes. A começar na pulga…
A pulga atrás da orelha

Haverá pulga mais simpática do que aquela que se esconde por trás da nossa orelha? Sim, é simpática, mas também perigosa.
Às vezes, uma frase dita assim de passagem, uma palavra com uma certa entoação, uma alusão muito vaga, muito disfarçada, uma conversa que deixamos passar por distracção — e ficamos com a tal pulga a picar-nos a pele por trás da orelha.
E a partir daí, começamos a puxar o fio à meada e às vezes a coisa começa a transformar-se numa bola de neve. Bem, chega de lugares-comuns. Qual é o próximo animal?
Cobras e lagartos

Dizemos dos outros cobras e lagartos — que, coitados, nem sabem o uso que têm na nossa língua. Eles que até são tão pachorrentos, apesar dos medos que temos na cabeça.
Quer lá a cobra saber do que andamos a maldizer. O que elas querem é paz e sossego (e um ou outro animal para matar a fome).
Lágrimas de crocodilo

Não deixando o mundo dos répteis, temos ainda os crocodilos que choram a fingir. Quer dizer, na verdade somos nós, animais matreiros como poucos, que andamos a inventar essas calúnias sobre os bichos.
Cães e gatos a caçar

Por cá, não dizemos que os cães e os gatos chovem, como em inglês. Mas dizemos que quem não tem cão, caça com gato.
E olhem que se calhar até ficamos bem servidos, se o objectivo for caçar moscas ou ratos (ou coelhos). Ou qualquer coisa pequena que se mexa muito.
Nem que a vaca tussa

Não sei muito bem porque não há-de tossir a vaca, mas pronto, a língua é assim (ou se calhar a língua até acertou e a vaca não tosse mesmo).
Mas diga-se que o pacato animal, nesta expressão, até tem sorte. Quando chegamos ao mundo dos insultos, a coitada da vaca está bem servida, está.
Bicho-carpinteiro

Aquilo que se mete nos móveis — mas também nas crianças e aí é que (7) a porca torce o rabo. Só o sono ou às vezes os desenhos animados aliviam essa comichão que deixa os putos aos saltos, às vezes sem saber o que fazer. Há dias em que o único antídoto é uma boa história contada no sofá, de preferência com animais que falam.
São vacas a tossir, porcas a torcer o rabo, crocodilos a chorar… Já sabemos que isto, no fundo, são tudo bichos na nossa cabeça. Será que algum destes animais, ao falar com um amigo, encolhe os ombros e diz «não sejas complicado como um humano»?
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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Olá, um abraço e obrigado pelo artigo, sempre interessante, Napoleão Gomide, Alvorada, RS, Brasil