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Origem do Pão por Deus
Já li várias opiniões, incluindo de alguns historiadores, acerca da origem prima do Pão por Deus. Nenhuma delas me satisfez.
Ora apontavam o terramoto de 1755 como o seu início, quando várias crianças da zona de Lisboa se juntaram a pobres e gente que tinha perdido a casa para pedirem esmola; ora falavam de ser uma tradição medieval; ora de um acto dos inícios do cristianismo na Península Ibérica, ligando-o à partilha, um gesto tipicamente cristão.
Se é verdade que o grande terramoto de Lisboa, que aconteceu exactamente no dia 1 de Novembro, pode ter estimulado, até por uma questão de necessidade, o hábito de se pedir o Pão por Deus, duvido que ele tenha tido berço nessa tragédia.
O Pão por Deus encontra paralelo no Soul Cake das ilhas britânicas, onde o folclore que o envolve é praticamente idêntico ao português, também se realizando na altura da passagem de ano celta – e não houve nenhuma catástrofe por lá para justificar a existência do rito.
No que toca à sua ligação com os primórdios do Cristianismo ibérico, sabemos que foi precisamente na altura em que a Igreja começou a ganhar poder que foram proibidos quaisquer actos de devoção aos mortos, onde estavam incluídas as oferendas e superstições do dia 31 de Outubro.
É certo que temos a palavra Deus no Pão por Deus, mas aventuro que esta nomenclatura mais parece um dos muitos rebrandings que a igreja fez de gestos inequivocamente pagãos, tal como aconteceu com os santos católicos que vieram substituir antigas Deidades autóctones.
Quanto à tradição medieval, é quase certo que ela tenha existido, não sendo, contudo, certo que tenha aí começado.
Com efeito, para termos vista alargada sobre o tópico, é preciso irmos mais atrás.
Os celtas acreditavam num ano dividido em dois, a parte do dia e do calor, por oposição à parte da noite e do frio. Esta era a altura em que passávamos da primeira estação, a solar, para a segunda, a lunar. A partir desta altura do ano, cessavam as colheitas e o escuro passava a ganhar à claridade, bem como a chuva começava a eclipsar o sol.
Sendo um tempo de transição, uma espécie de tempo-vácuo, ou tempo de ninguém, acreditava-se que os mortos voltavam à terra para visitarem os lares e levarem vivos de volta com eles para o mundo dos defuntos.
Assim se fazia a simbiose entre natureza e ritual – a crença no regresso dos finados à terra representava a chegada da morte da natureza, que a partir daqui esmorecia e deixava de dar fruto.
Tendo esta fé como pano de fundo, as dádivas aos mortos seriam uma tentativa de escape a este rapto que os defuntos queriam perpetrar nos vivos (tal como, no Halloween americano, a máscara serve para nos disfarçarmos de fantasma, para que os mortos que vêm à superfície nesse dia não nos tenham como vivos e nos resgatem para o seu submundo).
Mais tarde, todas estas tradições foram incorporadas num fazer cristão, e as dádivas aos mortos não foram excepção. E aí, em vez de um pão para os mortos, as povoações, já cristianizadas, passaram a pedir um pão por Deus.
(cont.)