_
Em seu redor, a turba vociferava contra a comunidade judaica. Dois frades, Frei João Mocho e Frei Bernardo, juntaram-se ao que estava a discursar, exibindo o crucifixo do “milagre” e gritando: “Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!”.
Os gritos deram início ao massacre. Os crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo o historiador António Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas.
Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha.
A matança e as pilhagens prosseguiram por três dias. Segundo os cronistas da época terão sido mortos entre duas mil a quatro mil pessoas; Alexandre Herculano e o historiador norte-americano Yosef Yerushalmi registaram duas mil, o número que obtém mais consenso entre os especialistas.
Damião de Góis, que tinha apenas quatro anos quando aconteceu a chacina, descreveu desta forma o massacre, na sua “Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel”:
“No mosteiro de sam Domingos da dicta cidade está hua capella aque chamão Iesu, & nella hum Cruçifixo, em que foi entam visto hum sinal, a que dauão cor de milagre, com quantos hos que se na egreja acharam julguam ser ho contrairo, dos quais hu cistão nouo dixe q lhe pareçia hua candea açesa que estaua posta no lado da imagem de Iesu, ho que ouuindo algus homes baixos, ho tiraram pelos cabellos arrasto fora da egreja & ho mataram, & queimaram logo ho corpo no resio.
Aho qual aluoroço acodio muito pouo, aquem hum frade fez hua pregaçam conuocandoho cotra hos cristãos nouos, apos ho que sairão dous frades do mosteiro, com hum Cruçifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, ho que imprimio tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros de naos que entam vieram de Holãda Zlenada, Hoestelãda & outras partes, assi homes de terra, da mesma condiçam & pouca calidade, que jutos mais de quinetos, começaram a mattar todolos cristãos nouos que achauam pelas ruas & hos corpos mortos & meos vivos lauçauão & queimauam em fogueiras que tinham feitas na ribeira & no resio, aho qual negoçio lhes seruião escrauos & moços, que cõ muita diligençia acarretauam lenha, & outros materiaes pera açender ho fogo, no qual domingo de Pascoella mattaram mais de quinhentas pessoas. A esta turma de maos homes, & dos frades, que sem temor de Deos andauam pelas ruas conçitando ho pouo a esta tamanha crueldade, se ajuntaram mais de homes da terra, da calidade dos outros, que todos juntos à segunda feira continuaram nesta maldade com mór crueza, & por já nas ruas nam acharem nenhus christãos nouos, foram cometter com vaiues & escadas, has casas em que viuiam, ou onde sabiam que estauam, & tirandohos dellas arrasto pelas ruas, co seus filhos, molheres, & filhas, hos lançauam de mistura viuos, & mortos nas fogueiras, sem nenhua piedade, & era tamanha há crueza q até nos mininos, & nas crianças que estauão no breço há executauam, tomandohos pelas pernas fendeo hos em pedaços, & esborachandohos darremeso nas paredes. Nas quaes cruezas se nam esqueçiam de lhes metter a saquo has casas, & roubar todo ho ouro, prata & enxouaes que nellas achauam, vindo ho negoçio a tanta dissoluçam que das egrejas tirauão muitos homes, molheres, moços, moças, destes inocentes, desapegandohos dos sacrarios; & das images de nosso Senhor, & nossa Senhora & outros Sanctos, com que ho medo da morte hos tinha abraçados & dalli hos tirauam, mattando & queimando misticamente sem nenhu temor de Deos assi a ellas quomo a elles.
Neste dia pereçeram mais de mil almas sem hauer na çidade quem ousasse de resistir, pola pouca gete de forte que nella havia, por estarem hos mais honrrados fora, por caso da peste. (…)”
Nesta mesma crónica, o historiador descreveu ainda a tuação do rei, que foi informado do que estava a acontecer em Lisboa quando estava em Aviz, a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz. D. Manuel I ficou “triste” e “enojado”, tendo dado de imediato poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados.
O problema era identificar os culpados. Uma cidade inteira revoltara-se contra os judeus e matara aqueles que não conseguiram escapar. Muitos portugueses (Damião de Góis conta que, entre os assassinos, estavam também estrangeiros, quase todos marinheiros, que recolheram às naus com os saques) foram presos e condenados à forca.
Góis escreveu que Frei João Mocho e Frei Bernardo foram queimados na fogueira, num local público, mas o ensaísta e professor António José Saraiva defendeu que os dois frades escaparam à condenação, argumentando que, 36 anos depois do massacre, ambos estavam vivos e ao serviço de D. João III em Roma.
Para castigar os habitantes de Lisboa, D. Manuel retirou uma série de privilégios à cidade: aqueles que tinham se provara terem participado no morticínio perderam todos os seus bens; os que não estavam envolvidos, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos seus bens; foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes na vereação municipal da cidade.
O pogrom de Abril de 1506 continua hoje a ser recordado em dois monumentos erguidos no Largo de São Domingos, onde começou a tragédia, inaugurados em Abril de 2008, numa iniciativa da autarquia em conjunto com as comunidades judaica e católica.
Autora: Maria José Oliveira
Fonte: Observador
_