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A força dos republicanos
Teria o destino do rei e da monarquia sido determinado pela força popular do Partido Republicano? Os Republicanos ganharam em 1910, e isso torna difícil conceber quão fracos foram antes da sua vitória. O Partido Republicano era um partido recente e consistia numa federação de cerca de 40 clubes, a maior parte em Lisboa (por comparação, o Partido Progressista tinha 150 associações). As suas votações declinaram entre 1895 e 1906. A correspondência de D. Carlos com os seus ministros não revela especiais preocupações com o Partido Republicano. Os governos toleraram republicanos como funcionários públicos, professores universitários e até oficiais do exército. Não eram vistos como uma ameaça.
O apelo do Partido Republicano esteve sempre limitado pelo seu facciosismo anti-clerical. As divisões da sua liderança limitaram a sua capacidade de iniciativa política. O partido foi sobretudo usado pelos políticos da monarquia para pressionar o rei. Por isso, só parecia ter força nos momentos em que uma parte da classe política se voltava contra o rei, como em 1890, em 1895 ou em 1906. Para o golpe de estado de 28 de Janeiro de 1908, os republicanos forneceram pequenos grupos de jovens dispostos à violência, como os que mataram o rei no Terreiro do Paço a 1 de Fevereiro, mas a direcção e o financiamento da conspiração pertenceram a políticos da monarquia. Daí, aliás, uma das razões pelas quais o processo do regicídio não avançou entre 1908 e 1910: todos temiam descobrir a responsabilidade de grandes figuras do regime.
D. Carlos morreu e a monarquia acabou. O que é que condenou D. Carlos e a monarquia? Não foi o arcaísmo do regime, nem os problemas da governação, nem a força do Partido Republicano, mas outra coisa: o papel que o rei desempenhava na vida política.
Mas era o Partido Republicano popular? Durante o reinado de D. Carlos, o país não mudou estruturalmente. A maior parte da população continuou a viver da agricultura e a residir em pequenas comunidades rurais. Lisboa, no entanto, cresceu bastante. A cidade reunia cerca de 8% dos habitantes do país e a sua população mostrou sempre uma grande irreverência perante a autoridade. O Partido Republicano explorou politicamente esta atitude do povo urbano, mas de modo nenhum se pode dizer que a população estava integrada no partido, como por exemplo os operários alemães estavam enquadrados pelo Partido Social Democrata na Alemanha.
A prova disso é que a rebeldia lisboeta contra as autoridades continuou a manifestar-se sob a República depois de 1910. D. Carlos procurou manter o contacto com a população da capital, mostrando que confiava no povo. Todas as tardes, passeava em Lisboa de carruagem aberta, sozinho e sem escolta. No dia 1 de Fevereiro de 1908, aliás, o atentado só foi possível porque o rei insistiu em respeitar esse costume, apesar da tentativa de golpe de estado uns dias antes. Em suma, o partido republicano não marcava a agenda politica e nunca conseguiu tornar Lisboa uma cidade proibida para o rei.
O papel do rei
Mas D. Carlos morreu e a monarquia acabou. O que é que condenou D. Carlos e a monarquia? Não foi o arcaísmo do regime, nem os problemas da governação, nem a força do Partido Republicano, mas outra coisa: o papel que o rei desempenhava na vida política, mais precisamente na alternância dos partidos no governo, num país onde as eleições não podiam produzir essa alternância.
A vida política no Portugal do princípio do século XX foi descrita, no ano de 1908, por um autor francês, Angel Marvaud, para um artigo na revista Annales des Sciences Politiques. Marvaud encontrou em Portugal um país rural, dominado por uma classe política dividida em partidos que competiam ferozmente pelo governo. Marvaud notou que havia um abismo entre os políticos e o povo: os políticos formavam uma classe urbana altamente instruída (80% tinham cursos universitários), enquanto o povo era uma massa rural e analfabeta. Para os políticos, o analfabetismo parecia não apenas o resultado de deficientes serviços públicos, mas do “desinteresse” do “povo” por integrar uma comunidade cívica de cidadãos.
Isto quer dizer que, aos olhos da própria classe política, faltava ao regime representativo português um eleitorado independente e civicamente mobilizado, para decidir quem deveria governar. Segundo os políticos, o país, analfabeto e rural, elegia quem o comprasse, e como quem lhe podia pagar melhor era o Estado, elegia sempre quem estivesse no governo. As eleições, que todos os governos ganhavam sempre, não serviam para fazer girar os partidos no poder, mas apenas para dar maiorias de deputados ao governo do dia. Nestas circunstâncias, quem poderia fazer alternar os partidos no governo? O rei.
A constituição da monarquia adaptara a ideia de Benjamin Constant, de que o rei devia dispor das prerrogativas constitucionais necessárias para harmonizar entre si os poderes do Estado. Por isso, o rei podia interferir em todos os poderes: nomeava e demitia os ministros livremente; dissolvia a Câmara dos Deputados, e nomeava os membros da segunda câmara do parlamento; e moderava penas judiciais. Mas na monarquia constitucional portuguesa, o rei usava esses poderes, não para moderar entre os poderes do estado, mas para arbitrar entre os partidos: era o rei, ao nomear e demitir os governos e ao dissolver a câmara dos deputados e nomear pares do reino, quem provocava a alternância dos partidos no governo – a alternância que era impossível de obter por meio de eleições, já que os governos as ganhavam sempre. Ora, isto colocava o rei no centro do debate político.
(cont.)